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Falta de negros na chefia do futebol afeta punições nos casos de racismo

Fatma Samoura tinha uma longa história como funcionária da ONU, trabalhando em diversas funções, até ser anunciada, em 2016, como secretária-geral da Fifa. Sua chegada à entidade foi comemorada como uma mudança de paradigma, já que ela é uma das poucas pessoas negras a ocupar um cargo de tamanha relevância em escala global. Para especialistas, a falta de mais negros em posições de chefia na administração do futebol faz com que as ações para combater o problema e para punir infratores sejam mais permissivas.

“Sem dúvida, a falta de negros em cargos de comando – técnico, gestor, dirigente – influencia nessa questão. Desde sempre são brancos legislando e julgando casos de racismo vividos por negros. Se vivessem na pele, as ações certamente seriam outras”, opina Marcel Diego Tonini, doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP).

“O que precisa ser feito é endurecer as penas e aumentar a representatividade negra em cargos de comando. Um está diretamente ligado ao outro”, complementa Igor Serrano, advogado especializado em direito esportivo e autor do livro “O racismo no futebol brasileiro”.

Um dos países onde as manifestações racistas têm se proliferado mais é a Itália. No final de semana passado, Mario Balotelli chutou uma bola para as arquibancadas na partida entre Verona e Brescia, após ter sofrido ofensas racistas por parte da torcida do Verona. Em um jogo de crianças, também no final de semana, a mãe de um dos garotos gritou para “negro de m…” em direção a um menino de dez anos.

Um dos motivos para o crescimento dessas manifestações racistas na Itália foi a ascensão recente de Matteo Salvini, líder da Liga, partido da direita nacionalista. Em seu governo, foi criada legislação que criminaliza a imigração, proibindo embarcações com refugiados de atracarem nos portos italianos.

“É claro que podemos fazer uma relação entre racismo e nacionalismo na Itália hoje, e não só lá. No entanto, temos de entender que esse problema no futebol é antigo, algo mais fortemente datado na Europa como um todo a partir da década de 1970, quando habitantes das ex-colônias na África e nas Américas passaram a se deslocar para lá para atuar como jogadores profissionais. Não é sem razão que as torcidas ultras tiveram início na mesma época. Foi na passagem de 70 para 80, também, que os regulamentos dos campeonatos nacionais na Europa começaram a permitir jogadores estrangeiros. Salvini e a Liga vêm radicalizando o discurso e as propostas, combatendo a imigração, o euro, o aborto, o casamento gay e fazendo alianças com a Frente Nacional francesa, com Vladimir Putin [presidente da Rússia] e países do Leste Europeu. Isso faz parte de um movimento global da extrema-direita”, afirmou o historiador Marcel Diego Tonini.

O descaso das autoridades italianas no tratamento dado aos casos de racismo na Itália fica evidente quando comparados aos casos de blasfêmia. Os meio-campistas Francesco Magnanelli, capitão do Sassuolo, e Matteo Scozzarella, do Parma, foram punidos com uma partida de suspensão por proferir em campo o nome de Deus e outras figuras religiosas em vão ou em contexto considerado desrespeitoso. A regra vigora há quase uma década e já puniu o atacante Zlatan Ibrahimovic e outros jogadores.

O Verona foi punido com o fechamento de um dos setores de seu estádio por um jogo. A conta ficou maior para o líder dos ultras do Verona, Luca Castellini. Depois de escancarar de vez o racismo estrutural italiano ao dizer que Balotelli “é italiano porque tem cidadania italiana, mas ele nunca será completamente italiano”. Depois, ele relativizou a manifestação da torcida do Verona. “Temos uma certa cultura. Somos uma torcida irreverente que tira sarro de jogadores carecas, com cabelos longos, do Sul e dos de cor, mas não o fazemos com instintos racistas ou políticos. É folclore, nada mais do que isso”, afirmou. O Verona anunciou que baniu Castellini por 11 anos sem frequentar os jogos do time.

Balotelli reagiu de forma dura às afirmações do torcedor do Verona. “Aqui, meus amigos, não é mais sobre futebol. Está insinuando situações sociais e históricas maiores do que você. Você é muito baixo. Está enlouquecendo. Acorde, ignorante. Você é a ruína. Porque, quando Mario fazia, e garanto que continuará fazendo, gol pela Itália, tudo bem, certo?”, disparou o atacante.

“A saída para a Itália é institucionalizar ações. Para isso a federação italiana precisa estar interessada em combater o racismo. Construir fonte de enfrentamento ao racismo dentro e fora de campo”, afirmou Luciano Jorge de Jesus, professor da rede pública, pesquisador e membro do Observatório da Discriminação Racial no futebol.

Não foi apenas Balotelli que sofreu racismo neste ano. Os atacantes Moise Kean, da Juventus, e Romelu Lukaku foram alvo da torcida do Cagliari. Dirigentes e torcedores relativizaram a manifestação, afirmando que se tratava de apenas uma tentativa para desestabilizar os jogadores adversários.

“A preocupação número um das autoridades italianas deveria ser o combate ao racismo e que hoje assola de uma forma muito contundente o país. A Fifa deveria inclusive expor uma preocupação específica com o que se passa na Itália”, analisa o advogado especialista em direitos humanos Vinícius Calixto.

A falta de compreensão do que é racismo ficou evidente na declaração de Giovanni Malagò, presidente do Comitê Olímpico Italiano, que, questionado sobre os recentes episódios de discriminação racial nas arquibancadas do país, disse que “erra quem vaia um jogador negro, mas erra ainda mais quem ganha 3 milhões de euros e se joga na área”.

O presidente da Fifa, Gianni Infantino, que recentemente forçou que o Irã permitisse que as mulheres frequentassem os estádios do país, derrubando uma proibição de 40 anos, já mostrou sua insatisfação com o que acontece na Itália. “O racismo se combate com educação, condenando, falando nele. Não se pode ter racismo na sociedade e no futebol. Na Itália, a situação não melhorou, isso é grave. Precisamos identificar os autores e expulsá-los dos estádios. É preciso, como na Inglaterra, a certeza da punição. Não devemos ter medo de condenar os racistas, devemos combatê-los até o fim”, falou.

Em julho deste ano, a Fifa anunciou um Novo Código Disciplinar, cujo texto dá ênfase ao combate ao racismo. Mas não é o que tem acontecido.

“O comportamento das autoridades italianas significa o que eles pensam da questão racial. O prefeito da cidade acha que o Balotelli que deve ser punido e não quem cometeu o racismo, porque aquilo não é racismo. As autoridades do futebol entendem que a questão racial não é algo importante e que os jogadores negros precisam entender e jogar. Se quiserem jogar, joguem; se não quiserem, deixem de jogar”, opinou Marcelo Carvalho, criador do site Observatório da Discriminação Racial no futebol que monitora os casos de racismo no esporte mais popular do mundo.

Por Thiago Braga

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