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Há (ou deveria haver) ética na interpretação de contratos?

O tema que trago à consideração de vocês, estimados leitores, pode até parecer pueril[1]. Todavia, furtivamente, me chamou deveras a atenção, o que me fez enveredar numa jornada de questionamentos multidisciplinares, ainda que superficiais, e que, agora, comparto contigo, meus queridos leitores.

A Europa ainda se recupera da (inédita) fase final da Champions League, que trouxe ao mundo a imagem de um destroçado Barcelona; da força do conjunto gaulês da agremiação de Lyon; do fracasso seguido de dois gênios em seus novos desafios, Pep Guardiola e Cristiano Ronaldo, este na Juventus e aquele no Manchester City; o esforço e determinação germânica do RB Leipzig; e, por fim, a coroação da síntese de equipe ideal nos dias de hoje, o campeão Bayern, verdadeiro amálgama de força, tática, técnica e raça.

Tudo isso foi vivido em questão de dias, como se não pudéssemos respirar após cada confronto realizado, a imagem que me vem à mente é a de que estávamos nos píncaros do Everest, a cada dia, o ar mais rarefeito, nos privando de uma respiração mais profunda e relaxante.

Certamente, viveu-se uma experiência única e incomum como esse modelo pocket de fase final da UEFA Champions League.

A partir desta imersão e resultados surpreendentes, dois fatos emergiram e que chamaram a atenção, especialmente, de quem atua no Direito Desportivo. E, agora, faço o recorte e uma diminuta análise, esperando que você possa também refletir comigo. Os dois episódios envolvem o clube catalão azul grená.

O primeiro deles envolve o atleta Philippe Coutinho, que atualmente atua no Bayern de Munique, devido a empréstimo feito pelo Barcelona. Segundo foi amplamente noticiado, existia no contrato firmado pelo clube inglês Liverpool – com quem originariamente Coutinho tinha contrato de trabalho desportivo – e o Barcelona uma cláusula de pagamento do montante de quatro milhões e quinhentos mil euros, na hipótese desse atleta vencer a UEFA Champions League (UCL).

Segundo se colhe, a cláusula apenas dizia isso, sem especificar nome de clube ou precisar datas, conforme se depreende das mais diversas notícias jornalísticas. Naturalmente, que este fato se torna notícia após o recente título do Bayern, posto que este atleta compunha o grupo bávaro, embora nem sempre iniciasse como titular, era figura constante[2].

De imediato, a agremiação catalã se manifestou a respeito disso, asseverando com vigor que não pagaria aquele valor, porque, tem-se como óbvio, que o Liverpool faria jus ao valor somente se atleta ganhasse a UCL atuando pelo Barcelona[3].

O segundo fato que apreciamos é o Caso Messi, que tem chamado a atenção diária do mundo. Depreende-se do que foi alardeado que o jogador argentino comunicou ao Barcelona o seu interesse em ver-se livre e seguir sua vida profissional, valendo-se de cláusula contratual que lhe permitiria desvincular-se sem qualquer ônus financeiro, para si ou o clube para onde pretende atuar.

Ocorre, entretanto, que o pomo-da-discórdia reside na redação da cláusula, diz-se que no contrato consta uma data expressa – no caso concreto, dia 31/05/2020, com extensão em 10 dias para se pronunciar sobre a cláusula de saída livre), enquanto Messi e seu staff interpretam a cláusula como sendo vigente até o “final da temporada”.

O clube, apesar de não haver se manifestado formalmente, se opõe a uma saída sem qualquer ônus para o atleta ou a sua nova equipe – o que é uma ululante obviedade-, como se colhe de manifestações diversas de pessoas ligadas à atual gestão[4].

No dia 30/08/2020, La Liga emitiu Nota Informativa, de expoente próprio, sobre a vigência do contrato entre Barcelona e Messi, ratificando-a, ao tempo em que assegurou que não emitirá a baixa federativa até que se pague o valor constante na cláusula de rescisão[5].

As teses ao derredor do tema Messi se cingem ao respeito do cumprimento literal do que dispõe o contrato ou da interpretação da vontade das partes quando conceberam o referido instrumento.

Emanuel Diaz Mirabile e Fabrício Petz retratam bem o dilema em artigo publicado no periódico eletrônico Iusport[6], procedendo ao exame do que pode descambar deste imbróglio:

A reserva de conocer lo que expresamente dicta la cláusula de la que hablamos, creemos que este asunto tiene únicamente 2 caminos a seguir, en caso de que Lionel Messi decida abandonar al Barcelona, el primero, que el jugador argentino decida rescindir unilateralmente el contrato vigente con el club culé, ejercitando su derecho a hacerlo, o bien, que el club tenga la razón respecto a que el derecho del jugador a activar tal estipulación feneció en los primeros días de junio, y la terminación del contrato vigente sea mediante el pago de la cláusula de rescisión.

Não quero aqui fazer esta análise jurídica do caso Messi, aliás, nem mesmo pretendo investigá-lo, ao menos nesta oportunidade.

O que me chama atenção nestes dois episódios é a posição diametralmente oposta assumida pela Diretoria do Barcelona, em relação aos conceitos que adotou como suficientes para enfrentar cada uma delas.

O tema discutido é um só, em ambos os casos[7], adotar-se-á uma interpretação literal ou se pretenderá alcançar a vontade das partes ao construir o contrato?

No potencial caso P. Coutinho o Barça arguiu, de logo, a vontade das partes como sendo elemento essencial na interpretação de um contrato. A literalidade nem sempre alcançará ou revelará o que se pretendeu com uma determinada cláusula, portanto, sendo necessário, para evitar-se o desequilíbrio contratual, o emprego da hermenêutica e da investigação do que as partes ao unirem as vontades almejaram.

D’outro giro, ao observar-se o caso Messi evidencia-se que, em tese (porque desconhecemos o texto original do contrato), as partes fixaram a data de 31/05/2020, como sendo limite da temporada, dando-lhe mais dez dias para se manifestar sobre a extinção do vínculo sem qualquer custo. Habitualmente, a final da UCL ocorre nesta data, encerrando-se assim, na Europa, a temporada. Ocorre, entretanto, que com o advento da pandemia de covid-19 o calendário europeu foi modificado.

Não sem razão a FIFA editou a Circular 1714, que deu diretrizes básicas para as federações nacionais e as confederações continentais se ajustarem ante ao novel quadro pandêmico, sobretudo em relação à validade dos contratos firmados. Reconheceu-se ali, como não poderia deixar de se fazer, os efeitos da pandemia no mundo do futebol e se promoveu mudanças para se adaptar, como extensão dos contratos firmados para a efetiva data de encerramento da temporada, alteração das janelas de transferência, etc.[8].

E mais, os clubes contaram com inegável apoio dos seus atletas, no caso do Barcelona, a redução dos vencimentos durante o período mais árduo da pandemia, foi de 70%, movimento este apoiado e liderado por Messi, inclusive[9].

Assim, portanto, não deveria o clube procurar agir dentro de uma idêntica linha sobre o seu posicionamento a respeito do tema?

Com efeito, falta ética ao Barcelona quando, por conveniência das cifras e dos impactos dos casos concretos, altera seu proceder em relação aos conceitos fundamentais na interpretação dos contratos.

Por que para Coutinho valeria a vontade das partes, enquanto para Messi, a literalidade? Falamos da mesma questão jurídica, contudo, que envolvem personagens e cifras bem diferentes!

O Barcelona FC, por sua história, pelo que envolve a relação da Catalunha com a Espanha[10], sempre nos transmite a imagem de que é um clube zeloso com os mais caros valores da boa ética. No entanto, neste episódio parece distanciar-se disso, na medida em que opta por buscar sempre o caminho do que lhe parece mais cômodo e adequado. Inobstante o clube catalão defenda, em seu Código de Ética, os seguintes valores: integridade, responsabilidade, transparência e respeito, dentre outros[11].

Toda a proposta de integridade e apreço por tão caros valores de boa governança sucumbem pela mantença de uma boa peleja por milhares de euros (e até a sobrevivência política no clube). Não se poderia, inclusive, asseverar que o clube desconhecesse tais políticas e valores corporativos, visto que contempla em sua estrutura um departamento de compliance e, no próprio código, o tem reconhecido.

O mundo de hoje cobra adoção de postura firme – não que seja inflexível – e que reflitam posicionamentos, sobretudo dos clubes, que representam tantas pessoas e impactam nas vidas de muita gente.

Os casos examinados revelam que teses e conceitos jurídicos podem mudar ao sabor das pessoas ou dos euros envolvidos.

Se impõe ética, que vá além dos meros interesses do clube, em qualquer quadrante da vida do clube. É preciso ter postura reta sempre.

……….

[1] Ou, como diria, o filósofo de baianidades, o Professor “Cumpadi” Washignton, “sabe de nada, inocente!”.

[2] A impiedosa realidade nos faz rememorar que Coutinho marcou dois tentos na goleada do Baeyrn sobre o Barcelona, em partida válida pelas quartas-de-final do citado torneio, por 8×2.

[3] Champions: Barcelona garante que não pagará R$ 33 milhões em bônus ao Liverpool por Coutinho. Disponível em: <https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/7333007/barcelona-garante-que-nao-pagara-r-33-milhoes-ao-liverpool-apos-coutinho-ser-campeao-da-champions> Acessado em 31 ago 2020.

[4] Disponível em: <https://www.lance.com.br/futebol-internacional/esporte-barcelona-diz-que-messi-nao-sai-sem-pagar-multa.html> Acessado em 31 ago 2020.

[5] Disponível em: <https://www.laliga.com/noticias/nota-informativa-contrato-lionel-messi> Acessado em 31 ago 2020.

[6] Disponível em: < https://iusport.com/art/112041/rescision-unilateral-o-pago-de-clausula-a-proposito-de-messi> Acessado em 31 ago 2020.

[7] Recomendo a leitura da excelente matéria de Ivana Negrão sobre o caso Philippe Coutinho, escutando dois qualificados advogados que analisam o tema que sucito. Disponível em: < https://leiemcampo.com.br/contrato-de-coutinho-preve-bonus-por-titulo-talvez-barcelona-nao-precise-pagar/> Acessado em 31 ago 2020.

[8] Circular 1714. Disponível em: < https://resources.fifa.com/image/upload/1714-covid-19-football-regulatory-issues.pdf?cloudid=x9q8h6zvyq8xjtfzmpy9> Acessado em 31 ago 2020.

[9] Coronavírus: Lionel Messi anuncia que elendo do Barcelona vai reduzir salários em 70%. Disponível em : < https://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-espanhol/noticia/coronavirus-lionel-messi-anuncia-que-elenco-do-barcelona-vai-reduzir-salarios-em-70percent.ghtml> Acessado em 31 ago 2020.

[10] É bem curiosa essa sensação e se nota nas coisas mais simples. Se você estiver em Barcelona e sair de lá, por exemplo, de carro, rumo a Zaragoza. Ao desembarcar ali a percepção é que se encontra em outro país. Desde a sonoridade emanada dos diálogos das pessoas, dos signos públicos espalhados, etc. Tudo difere realmente.

[11] Disponível em: < https://media-public.fcbarcelona.com/20157/43501761/656471/1.0/656471.pdf?t=1490701031000&_ga=2.44542498.722278486.1598965398-467519609.1598965398> Acessado em 31 ago 2020.

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