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Justiça Desportiva tem decisões diferentes em casos parecidos de racismo no futebol brasileiro. Por que isso acontece?

Em 2021, a Justiça Desportiva parece que enfim decidiu tratar com mais seriedade casos de discriminação no futebol brasileiro e passou a punir, ainda que de forma branda para muitos, os clubes e torcedores. Apesar do avanço, os tribunais muitas vezes parecem divergir em seus julgamentos mesmo em situações parecidas, como aconteceu recentemente. Mas por que isso acontece? Segundo especialistas, a resposta pode estar na falta de segurança jurídica no trecho do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) que aborda assuntos dessa natureza.

“O artigo 243-G traz punições pesadas para atos discriminatórios considerados graves. Esse juízo de valor sobre a gravidade do ato é subjetivo, o que traz insegurança jurídica. Em linhas gerais, o entendimento tem sido o de punir clubes cujas torcidas entoam cânticos considerados como discriminatórios com a pena de multa. No entanto, a história é diferente quando o infrator é um dirigente, membro da comissão técnica ou outras pessoas que exerçam algum outro cargo no clube”, analisa Fernanda Soares, advogada especialista em direito desportivo e colunista do Lei em Campo.

É o que vimos no caso do Brusque, que em 1ª instância na Comissão Disciplinar havia perdido três pontos por atos discriminatórios cometidos por um dirigente contra o atleta Celsinho, do Londrina. A decisão foi reformada pelo Pleno, que aplicou ao Brusque a punição de multa e a perda de mando de campo.

“A gravidade do ato, portanto, pareceu estar na pessoa que comete o ato considerado discriminatório. Isso pode ser explicado pelo fato de que a depender do infrator, a proporção e o peso do ato discriminatório aumenta consideravelmente, o que pode resultar no aumento do dano sofrido pela vítima também. A definição no RGC 2022 sobre atos discriminatórios serem sempre considerados graves ajuda, mas seria interessante um posicionamento do tribunal sobre a questão”, reforça a advogada.

Já Vinicius Loureiro, advogado especializado em direito desportivo e colunista do Lei em Campo, cita que os tribunais esportivos de forma geral têm um problema crônico: o casuísmo.

“Intencional ou não, a falta de publicidade e formalização das decisões dá margem a essa ‘flexibilização’ na hora dos julgamentos, que além de reduzir significativamente a segurança, aumenta a pressão sofrida pelos próprios julgadores. A cada caso de repercussão analisado é uma nova onda de pressão, que poderia ser bem menor caso os precedentes fossem públicos e respeitados. O tribunal já atuou de maneira flagrantemente contrária a seus próprios precedentes, inclusive em casos de racismo e injúria racial, e isso dificulta o combate a tais atitudes. Além do mais, coloca sempre sob suspeita as decisões do próprio colegiado”, avalia.

O que diz o art. 243-G do CBJD?

Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

PENA: suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de cento e vinte a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código, além de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).

§ 1º Caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, está também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidência, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de prática desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente.

§ 2º A pena de multa prevista neste artigo poderá ser aplicada à entidade de prática desportiva cuja torcida praticar os atos discriminatórios nele tipificados, e os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias.

§ 3º Quando a infração for considerada de extrema gravidade, o órgão judicante poderá aplicar as penas dos incisos V, VII e XI do art. 170.

Marcelo Carvalho, idealizador e diretor-executivo do Observatório Racial no Futebol, também entende que a falta de detalhes no art. 243-G faz com que haja punições tão brandas para os clubes, sendo a maioria delas financeiras.

“Quando o art.243-G cita o ‘considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva’ para punir com a perda de pontos ou exclusão do campeonato, acaba ficando uma brecha para cada tribunal julgar da maneira que entender qual é essa quantidade. Por conta disso, os tribunais de Justiça Desportiva penalizam os clubes geralmente de forma financeira, com poucos casos em que o clube teve a perda de pontos”.

A advogada Fernanda Soares cita que além da questão da injúria racial, também existe incerteza na aplicação do artigo para punir atos homofóbicos.

“Qual seria a definição sobre exatamente qual conduta é considerada homofóbica para que seja punível por afronta ao artigo 243-G, à luz da proteção à integridade da competição, bem jurídico tutelado pela Justiça Desportiva? Ainda que não tenhamos a definição estritamente legal sobre a conduta punível à luz da analogia à Lei do Racismo, seria benéfico que os tribunais de justiça desportiva, após reflexão e diálogo com a comunidade desportiva, estabelecessem critérios e condutas definidas para a aplicação do artigo 243-G. A medida traria maior relevância, eficácia e justiça no combate à homofobia”, afirma.

Casos parecidos, decisões diferentes

Recentemente, dois casos de julgamentos no Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) tiveram resultados diferentes apesar de serem parecidos.

Na quinta-feira passada, 3 de fevereiro, o Pleno do STJD reformou a decisão em primeira instância e adicionou a perda de mando de campo para o Brasil de Pelotas no caso de injúria racial cometido por um torcedor do clube durante a partida contra o Brusque, no dia 29 de setembro, válida pela Série B do Brasileirão. Além da multa de R$ 15 mil ao time mandante, o torcedor foi suspenso por 900 dias dos jogos em que o clube gaúcho for o mandante.

Douglas Menezes Jorge chamou o zagueiro Sandro, do Brusque, de “negro desgraçado” durante a partida. Um policial que estava no estádio ouviu a injúria e prendeu o torcedor em flagrante. Diante dos fatos, relatados na súmula pelo árbitro, o Brusque enviou ao STJD uma Notícia de Infração contra o Brasil de Pelotas e o autor das ofensas.

No mesmo dia, o Cruzeiro conseguiu reverter no Pleno do STJD a pena de multa e perda de um mando de campo pela injúria racial realizada por um torcedor contra o jogador Jefferson, do Remo, durante uma partida da Série B do ano passado.

A denúncia de injúria racial foi exposta pelo Remo nas redes sociais, após vitória por 3 a 1 sobre o Cruzeiro em pleno Independência. No vídeo, que não é possível identificar a pessoa que gravou, é possível ouvir: “Vai tomar no c…, macaco”, enquanto o atacante Jefferson comemorava um dos gols.

Aumento dos casos de racismo no futebol brasileiro

Após o marcante caso envolvendo o goleiro Aranha, na época jogador do Santos, alvo de insultos racistas por torcedores do Grêmio, que culminou na desclassificação do clube gaúcho da Copa do Brasil de 2014, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol passou a mapear os casos de racismo no futebol brasileiro.

De acordo com o site, em três anos, as denúncias mais que dobraram. Foram de 20, em 2014, para 43, em 2017. O maior número de casos foi registrado em 2019, com 67. Houve uma forte queda em 2020, principalmente por conta da paralisação do futebol em meio à pandemia de Covid-19. No ano passado, cerca de 50 denúncias foram registradas.

“Os casos de racismo no futebol brasileiro aumentam ano após ano. De 2014 para cá, tivemos um aumento considerável de casos. Teve somente dois anos que essa curva não foi ascendente (2020 e 2021) devido à ausência dos torcedores nos estádios. Se diante desse aumento, o tribunal entender que não vai julgar, ou por falta de elemento ou por ter sido cometido por somente um torcedor, os casos vão se agravar cada vez mais, porque essas pessoas vão se sentir à vontade para praticar esses discursos de ódio nos estádios de futebol”, afirma Marcelo Carvalho.

Por fim, Fernanda Soares ressalta que é “inegável o papel da Justiça Desportiva no combate à discriminação e o artigo 243-G é ferramenta fundamental nessa luta”. No entanto, ela entende que para isso ser efetivo, o artigo em questão precisa ser aperfeiçoado.

Crédito imagem: Flicker

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