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Liberdade, liberdade!

Ah, como é bom ver a discussão de conceitos tão complexos ser trazia à tona. Infelizmente alguém sempre acaba entrando na mira para que fatos simples possam ser discutidos, e o alvo da vez é a jogadora de vôlei de praia Carol Solberg. A atleta foi denunciada esta semana após ter gritado “Fora, Bolsonaro” durante uma das etapas do Circuito Mundial de Vôlei de Praia, realizada em Saquarema.

Após a denúncia, milhares de manifestações favoráveis e contrárias à atleta surgiram. Dessas mensagens de apoio, muitas se baseavam na ideia de liberdade de expressão, garantida pela Constituição Federal. Mas até que ponto essa liberdade é válida.

Antes de mais nada, é importante que nós tentemos entender, ainda que brevemente, o que é liberdade. E há alguns pensadores que podem nos ajudar com relação a isso.

Começamos com Rousseau, que nos traz duas ideias de liberdade. A primeira, a liberdade natural, trata da liberdade absoluta do indivíduo de fazer tudo aquilo que entender ser capaz de fazer, independentemente de outros. Ou seja, a ideia de liberdade natural trata de um conceito absoluto de liberdade, onde cada um pode fazer absolutamente tudo o que quiser. Rousseau diz, no entanto, que desde que os humanos se tornaram humanos e passaram a se organizar em sociedade, essa liberdade foi superada por sua própria natureza e seu comportamento individual. A liberdade natural pode ser considerada a liberdade dos instintos, onde o homem se deixa conduzir não pelo lado racional, mas pelos próprios instintos. Para que a estrutura social pudesse sobreviver, foi preciso que a ideia de liberdade natural fosse deixada de lado, em detrimento de um outro conceito, a liberdade civil.

A liberdade civil nada mais é do que dar ao homem a liberdade de se organizar e, dentro dessa organização, criar regras e limites a seu próprio comportamento, de forma a propiciar a estruturação social. Sendo assim, o homem exerceria sua liberdade natural ao escolher abrir mão de parte de sua liberdade e criar regras para seu próprio comportamento, de forma a manter estável uma estrutura coletiva. Surge assim a ideia de liberdade civil. É apenas com o surgimento da liberdade civil que, “tomando a voz do dever o lugar do impulso físico, e o direito o lugar do apetite, o homem, até aí levando em consideração apenas sua pessoa, vê-se forçado a agir baseando-se em outros princípios e a consultar a razão antes de ouvir suas inclinações”[i].

Uma discussão semelhante surgiu também esta semana, em razão da briga em um bar do Leblon[ii]. O fato que deu início à confusão foi, claramente, uma distorção entre as compreensões de liberdade e uma incerteza do pacto social, o que gera instabilidades em toda a estrutura da sociedade. Se o contrato social não é claro e cumprido, as pessoas tendem a retomar sua liberdade natural.

No entanto, Rousseau não foi o único que tentou aclarar o dilema da liberdade. Sartre é possivelmente o pensador que nos traz mais contribuições relevantes nesse sentido. Para ele, o homem está condenado a ser livre, e esta liberdade é exercida a cada decisão que ele toma. Em razão disso, ao mesmo tempo em que é condenado a ser livre, o homem é condenado a ser responsável por sua própria liberdade, sendo os acontecimentos futuros decorrentes de suas próprias escolhas. E mais para frente vamos demonstrar como os acontecimentos recentes são decorrentes das livres escolhas da atleta e, portanto, são de sua responsabilidade. No mesmo sentido apontou Freud, que alegava que ninguém quer realmente a liberdade, uma vez que na medida em que sua liberdade aumenta, aumenta também sua responsabilidade.

A discussão sobre a liberdade também é refletida quando observamos apenas uma de suas dimensões, a liberdade de expressão. A começar pela inexistência de um conceito absoluto de liberdade de expressão. E a divergência passa pelo paradoxo da tolerância, proposto por Karl Popper em seu livro A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. Para ele, a sociedade tem o direito de se posicionar contra a intolerância. John Rawls afirmou em Uma Teoria da Justiça, no entanto, que a partir do momento em que a sociedade não tolera a intolerância, ela própria pode se tornar intolerante.

Essa ideia vai de encontro ao que Voltaire entende por liberdade de expressão. Em sua obra Tratado sobre a Tolerância, o pensador francês aponta que a evolução das ideias só ocorre a partir do debate das ideias. Sendo assim, todas as ideias deveriam ser expostas, por mais absurdas que sejam, deveriam poder ser livremente expostas, já que é apenas com a possibilidade de contradição dessas ideias que elas podem ser enfraquecidas, e ideias que não são expostas não podem ser contraditadas, e ideias não contraditadas se fortalecem. Nesse sentido, a liberdade de expressão deve ser sempre plena. Pensando assim, ao garantir a liberdade de expressão, nossa Constituição garante a todos o direito de dizer tudo.

No entanto, a liberdade de expressão não é a única dimensão da liberdade que precisa ser analisada neste caso. A mesma Constituição garante a todos os indivíduos a liberdade de associação, ou seja, a liberdade para que se uma a outras pessoas para a prática de fins lícitos. E, como em toda associação de pessoas, é possível a criação de uma normatização específica de comportamento, já que essa escolha foi realizada de maneira livre pelo próprio indivíduo.

É exatamente esse o caso da atleta Carol Solberg. Gozando de sua liberdade de associação, a atleta decidiu se inserir na estrutura da Federação Internacional de Vôlei. Ao tomar essa decisão, a atleta conhecia as regras vigentes e decidiu com elas concordar de forma a poder participar daquele grupo social. Nesse momento, ela livremente decidiu abrir mão parcialmente de sua liberdade de expressão, sendo plenamente responsável por essa decisão.

Ao praticar uma ação que era contrária ao regulamento e à estrutura normativa daquele conjunto social no qual se inseriu por vontade própria, a atleta se expõe à possibilidade de ser sancionada por sua infração.

O Movimento Olímpico é sabidamente um ambiente no qual as manifestações políticas são reprimidas. Basta que nos lembremos de Tommie Smith e John Carlos, que em 1968 foram forçados pelo Comitê Olímpico Internacional a devolver suas medalhas olímpicas em razão de manifestações políticas durante a cerimônia de premiação. Desde então é impossível alegar desconhecimento sobre as restrições que o ambiente esportivo impõe às manifestações políticas em ambiente de competição.

Isso não quer dizer que os atletas são impedidos de terem e manifestarem suas opiniões políticas, quer dizer apenas que essas opiniões não podem ser manifestadas nos espaços de competição, utilizando-se das estruturas e da visibilidade delas. Há uma infinidade de casos de atletas que se manifestam politicamente em suas redes sociais, e nenhum deles pode ser punido por isso. No entanto, ao utilizar o espaço da competição para tais manifestações, Carol Solberg contrariou não apenas a ética esportiva plenamente consolidada, mas também disposição expressa de regulamento com o qual ela mesma concordou.

A liberdade existe, mas o uso que fazemos dela é de nossa responsabilidade.

……….

[i] Rousseau, JJ. (2018) O Contrato Social. Editora Lafonte.

[ii] https://www.metropoles.com/colunas-blogs/leo-dias/pancadaria-no-leblon-mulheres-de-biquini-em-carro-conversivel-brigam-na-rua

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