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Mandante de jogos e exclusividade do direito de arena: uma ponte para o futuro ou um “cavalo de Troia”?

Por Milton Jordão [1] e Cristiano Possídio [2]

Pensar o sistema jurídico-desportivo em articulação com as melhores proposições para o mercado e seus players nem sempre é missão das mais fácies. Os entraves que nascem dos interesses específicos de cada um dos segmentos, combinados com o constante desejo de controle próprio do Estado sobre o mundo do esporte, acaba dificultando, na prática, encontrar-se soluções adequadas para as constantes necessidades imposta pela modernidade.

Por vezes, muitos projetos de lei percorrem longos e intermináveis caminhos burocráticos e sequer chegam ao mundo das leis. São realizadas audiências públicas, seminários, simpósios, reuniões temáticas; enfim, promove-se o amplo conhecimento e debate de temas sensíveis que são objeto de mudança de uma futura lei, como ocorreu com o PLS 68/2017 – que traz proposta de texto para uma nova Lei Geral do Esporte, fruto de um árduo labor de juristas escolhidos pelo Senado Federal – ainda numa espécie de hibernação no Congresso Nacional.

Em outros casos, atropela-se o processo legislativo, com utilização de Medidas Provisórias, a fim de encurtar caminhos e muitas vezes distorcê-los, para atingir certos objetivos que mereceriam maiores debates. Como se diz no jargão popular, “o Brasil não é para amadores” e não é mesmo!

No dia 18.06.2020, fomos presenteados com a Medida Provisória (MP) n° 984 inusitada que, aparentemente e conforme destacado por inúmeros jornalistas, teria sido editada por interesses específicos do C.R. do Flamengo. O Congresso Nacional terá prazo de até 60 dias[3]  – prorrogáveis por mais 60 dias[4]– para apreciar a referida MP, podendo rechaçá-la, alterá-la ou simplesmente convertê-la em Lei.

O referido instrumento legal modificou a Lei n° 9.615/1998 (Lei Pelé) em alguns pontos: concedeu, exclusivamente, ao mandante a comercialização de transmissão dos jogos (direito de arena); permitiu que atletas sejam contratados por prazo mínimo de 30 dias; e revogou a vedação de patrocínio de marcar de empresas de radiodifusão/telecomunicações em clubes de futebol.

Dos três temas centrais, objeto da MP n° 984, apenas a permissão, excepcional e até o final do ano de 2020, para a contratação de atletas profissionais pelo prazo mínimo de 30 dias, atende à justificativa para o seu manejo; os outros dois não se adequam ao requisito da urgência, no que caracteriza um desvirtuamento das alterações, sem maiores debates e amadurecimento. Tanto é assim que já existem quase uma centena de emendas parlamentares oferecidas, isso em tão pouco tempo, o que deixa clarividente a inconveniência da utilização desse instrumento jurídico para alterar o art. 42 da Lei n° 9.615/98.

Para esse momento, pretende-se traçar algumas linhas sobre a nova regra do direito de arena, tentando abordar, de partida, a seguinte inquietude: qual o significado dessa alteração? Trata-se de uma mudança radical, considerando o atual cenário, por isso que a MP n° 984 tomou conta do noticiário esportivo em tempos de pandemia[5]!

Muitos dirigentes comemoraram a alteração, na perspectiva de que traz novos ares para o mercado desportivo e se adequa ao modelo de boa parte dos mercados europeus e das mais importantes ligas, embora vejamo-la com cautela.

A mudança do texto do “caput” do artigo 42, onde, anteriormente, os dois clubes que disputavam uma partida eram titulares do direito de arena, agora traz como exclusiva a titularidade deste direito somente para o mandante.

A rigor, isso não é uma novidade, principalmente quando saímos do cenário nacional e olhamos o restante do globo (em especial a Europa e América do Norte). O debate, também, não é algo desconhecido dos experts. Então, caro leitor, você poderia indagar: mas qual a razão de tanto espanto?

O espanto se deveu à forma eleita pelo Presidente – Medida Provisória – e o momento de fazê-lo, sem debate e no meio de uma pandemia, para tratar de tema tão delicado, sem que houvesse a mínima sinalização aos atores sociais.

A despeito de tais questões e da própria ilação de que a MP n° 984 teria sido editada para atender aos reclamos do C.R. do Flamengo ou expor a Rede Globo, as mesmas não serão aqui tratadas, nem tampouco os aspectos constitucionais ou não da via eleita; enfrentemos o mérito, que vem sendo arduamente celebrado aqui e acolá, bem como, abordar o que dizem vozes contrárias e sobressaltadas.

Estaríamos diante de uma ponte para o futuro?

A divisão dos direitos de transmissão de jogos (arena) sempre foi tema adredemente criticado por gestores e especialistas em marketing desportivo, porque, da forma em que foi concebida na lei, criou “zona de conforto” para clubes que não pretendem potencializar o desenvolvimento de novos negócios.

Explicamos. Como cada clube era detentor de 50% dos direitos de arena, o poder de negociação de um deles sempre era menor. Somente quando estavam unidos em bloco essa força se potencializava. Isso porque, bastava a oposição de um dos contendores no espetáculo esportivo para que aquele jogo não fosse televisionado, deixando assim de ser um produto, perdendo totalmente valor econômico. Esse cenário, em tese, favorece à contratante/captadora e transmissora das imagens.

Então, bastava que boa parcela dos clubes que disputam o campeonato celebrar acordos individuais com uma rede de televisão para que os demais ficassem também obrigados a fazê-lo – e, tal qual gado, todos conduzidos para o “abate”. Ou seja, se viam quase que compelidos a aceitar os termos em que aquele player lhes impunha.

Assim sendo, a ideia aqui analisada, em si e dentro da perspectiva de se dar aos clubes mais liberdade para dispor sobre seus ativos, deve realmente ser vista com bons olhos, porque é uma adaga no coração do monopólio e controle das transmissões de jogos, além de seguir a tendência dos mercados mais evoluídos e rentáveis do mundo:

No Brasil, este mercado sempre foi marcado pelo monopólio da Rede Globo, mas, não se enganem com o canto da sereia, amigos leitores; não se deveu à inexistência de lei, muito, quiçá, pela própria vontade dos titulares do direito.

Observem no quadro acima a diferença. Com exceção de México, Portugal e Grécia, apesar do direito de comercialização das transmissões desportivas recair sobre o mandante, as negociações são realizadas de modo coletivo. Isso dá um poder extraordinário aos clubes, porque o fazem em bloco, valorizando um produto extremamente rentável, desejável e com um extraordinário mercado consumidor, com divisões de cotas que observam critérios equitativos, embora variando entre os países.

O diferencial, portanto, vai ser sempre esse: negociações coletivas, independentemente de quem detenha o direito de arena. Por isso, alguns analistas começam a ponderar se a novidade normativa não seria um verdadeiro cavalo de Troia. Quer-se dizer, um presente que pode se revelar como um grande problema, lá na frente!

Ao permitir que os clubes negociem o direito de arena, enquanto mandantes de um jogo, garante-se a estes 100% de controle sobre o evento desportivo que ocorre em sua praça desportiva. Assim, realmente, ganham mais força para negociar com as redes de televisão o melhor preço para seus jogos.

A questão de um milhão de dólares é se todos os jogos dos clubes são atrativos do grande público! Sabe-se que a resposta será negativa, talvez somente uns três clubes de expressão nacional garantam às televisões expressivos índices de audiência em todos os seus jogos num campeonato.

Então, pode ser que esta liberdade seja uma faca de dois gumes para boa parcela dos clubes, porquanto estes venderão muito bem uns quatro ou cinco embates, mas terão outros tantos que ficarão sem realizar boas vendas. Com isso, o valor médio de cada partida cairá e no fim poderá ganhar menos do que percebia antes!

Não é só. Tomando-se como exemplo o C.R. do Flamengo: teria gestão exclusiva sobre 19 dos 38 jogos do Campeonato Brasileiro, exatamente aqueles em seu mando de campo. Mas não teria nenhum sobre os outros 19 jogos em que figura como visitante que poderiam, por exemplo, ser transmitidos pela Rede Globo, inclusive na TV aberta, caso os demais clubes firmem ou mantenham contratos, em conjunto ou separadamente, com ela. Isso sem pagar um único centavo ao C.R. Flamengo.

Qual seria, portanto, a solução!?

Sempre, a negociação coletiva do direito de arena pelos clubes, ou, sucessivamente, formação de uma liga para que assim o seja. E isso não é “inventar a roda”. As grandes ligas de clubes no mundo fazem assim e dá certo.

Agora é esperar o resultado dos embates das dezenas de emendas que já estão tramitando na Casa Legislativa Federal para se saber, ao final, qual será o resultado. Isso não impede, todavia, que os clubes passem a debater o tema, em vista de se antecipar ao Estado e se tornarem, coletivamente, mais responsáveis nas negociações dos direitos de transmissão, importante produto que alavanca as competições e confere resultados cada vez mais significativos, especialmente quando trabalhados com mais competência.

……….

[1] Advogado. Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL. Mestrando em Direito Desportivo pela Universidade de Lleida (Espanha). Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB Nacional. Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/BA e OAB/SE. Presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA). Membro e colunista do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD). Ex-Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/BA. Presidente do STJD do Judô. Ex-Procurador do STJD do Futebol. Autor de artigos e obras jurídicas sobre Direito Desportivo.

[2] Advogado. Mestrando em Direito Desportivo pela Universidade de Lleida (Espanha). Vice-presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA). Membro e colunista do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD). Vice-Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB-SE. Membro da Comissão de Direito Desportivo da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (ABRAT). Membro do Instituto Bahiano de Direito do Trabalho (IBDT.

[3] Vide art. 62, § 3°, CF/88.

[4] Vide art. 62, § 7°, CF/88.

[5] A matéria tem causado verdadeiro furor na mídia e nos meios especializados. Inclusive, conforme registros obtidos no sítio do Congresso Nacional foram feitas 91 emendas à referida Medida Provisória. Disponível em: < https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/142594> Acessado em 23 jun 2020.

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