Tomada de decisão é umas das coisas mais recorrentes e importantes no campo de jogo, seja por parte dos jogadores ou da equipe de arbitragem. Uma tomada de decisão equivocada pode comprometer um lance, um jogo ou até mesmo o resultado final da partida. Estudos mostram que existem em um jogo mais de 1.200 acontecimentos passíveis de intervenção do árbitro.
Para conhecer mais sobre o assunto conversei com Pedro Henriques Duarte Araújo, português de 54 anos, foi oficial do exército e árbitro de futebol profissional durante 20 anos, atualmente é comentarista e colunista esportivo, instrutor de arbitragem, docente em universidade de Portugal e autor dos livros “O Treino da Tomada de Decisão do Árbitro de Futebol”, “Árbitro de Bancada” e com participação no livro “A Ciência da Arbitragem em Portugal”.
Renata Ruel: Quais as diferenças das tomadas de decisões dos árbitros para os jogadores durante o jogo?
Pedro Henriques: São áreas distintas a nível da tomada de decisão. O jogador tem que fazer uma interpretação do adversário, técnica e individual de passe, recepção, arremate, cruzamento, etc. Tem que fazer também uma interpretação tática na ligação com seus colegas, com as instruções recebidas pelos seus treinadores e depois precisa processar isso fisicamente. Os árbitros são circunstâncias distintas, mas acabam por desenvolver as mesmas bases, porque os jogadores partem da base cognitiva e física e os árbitros também, mas o árbitro têm que fazer a interpretação, conhecer as leis do jogo e o regulamento, tem que conhecer o jogo, porque não basta conhecer as 17 regras do jogo, se faz necessário a sensibilidade e o bom senso, como alguns dizem que seria a 18º regra que não existe, mas no fundo existe na perspectiva de conhecimento do jogo, dos próprios jogadores, das suas manhas, de como está o jogo e junto com isto tudo fazer uma interpretação cognitiva das regras, ver se há ou não faltas, se há impedimento ou não, etc. e depois a questão física em se movimentar e estar em qualquer parte do campo de jogo para melhor poder decidir e depois ainda tomar a decisão. Portanto de uma maneira geral é distinto a tomada de decisão de um jogador e um árbitro, mas tem os aspectos em comuns que são os cognitivos e a exigência física.
RR: Qual a influência da emoção na tomada de decisão?
PH: As emoções obviamente que são extremamente importantes. Nós temos um conjunto de características ou habilidades ou componentes psicológicos que é fundamental. Fatores como concentração, autoconfiança, comunicação, autocontrole são fundamentais para a decisão. Quando falamos de emoções, falamos muitas vezes dos componentes que envolvem o jogo, ou seja, aquilo que é interação do público com o resultado que está acontecendo, a forma como os jogadores estão a reagir. E nós sabemos que a postura, atitude dos jogadores vai mudando ao longo do jogo e isso tem reflexo na maneira como aceitam ou contestam as decisões da equipe de arbitragem. Por isso é fundamental que um árbitro, independentemente de tudo que envolva, todo o ambiente, o resultado, a importância do jogo, o que está acontecendo, se houve advertências, expulsões, se houve agressões, o árbitro precisa ter a capacidade de não ter a sua tomada de decisão influenciada por esses fatores, ou seja, porque uma equipe está jogando com menos jogadores ou uma equipe reclama mais ou um público assobia mais, o árbitro precisa se isolar desses fatores, que é algo difícil, e continue a manter a sua tomada de decisão igual no primeiro e no último minuto, independente de todo ambiente que o envolve. Isso não é simples, por isso a parte da psicologia e do coaching são muito importantes, as questões da concentração, motivação e ativação são fundamentais e há ferramentas na psicologia permitem treine isso. Se o árbitro permitir se deixar influenciar pelo jogador ou torcedor provavelmente, ou quase certeza, sua tomada de decisão será afetada. E falar em afetar a decisão significa falar em erros. Então é normal que se um árbitro se deixar envolver pelas emoções vai errar muito mais.
RR: Os jogos de futebol estão voltando, porém sem torcidas nos estádios. A tomada de decisão do árbitro é diferente quando há silêncio e quando há barulho de torcida?
PH: São três as características fundamentais para a tomada de decisão: uma tem a ver com a própria pessoa, com o indivíduo, ou seja, a sua competência, aspectos cognitivos, conhecimento das regras do jogo, sua condição física, etc.; outra tem a ver com a tarefa, o que o árbitro precisa executar conforme as regras do jogo; e por último o fator ambiente, que pode ser uma questão física em função do calor, chuva, a altitude, mas também pode ser o fator público. Os árbitros normalmente estão em ambientes onde há muitos assobios, contestações de suas decisões em função dos torcedores, há sempre pessoas a gritar, a aplaudir, assobiar, incentivar os jogadores. Quando se tira pelo menos um dos fatores que está presente em todos os jogos, nesse caso o torcedor, fica estranho e, portanto, isso vai afetar a sua concentração. Podemos dizer que “o barulho do silêncio”, a falta do barulho acaba a influenciar sim a tomada de decisão. Porque ao desaparecer o barulho que está habituado a ouvir ou a ter neste caso o silêncio, onde ouve os ecos, aparece um fator novo e estranho. O costume é em tomar decisões com o barulho, de repente com o silêncio isso afeta a todos e pode acontecer do árbitro ficar mais desconcentrado em função do fator ambiente ter mudado. Mas isso é algo treinável atualmente. Eu estava acostumado a fazer jogos com 30.000 pessoas, ao fazer jogos com 300 pessoas a minha concentração e meu aspecto cognitivo eram afetados, de repente eu estava desconcentrado e não estava focado no jogo e isso leva obviamente ao erro. Os árbitros devem estar preparados para este ambiente, buscando se motivar e concentrar, abstraindo-se deste fator.
RR: A fadiga física influência na tomada de decisão?
PH: A condição física entra no aspecto indivíduo nas três características fundamentais para a tomada de decisão. O cansaço é basicamente a falta de oxigênio nos músculos e no sistema nervoso central. Um indivíduo que está menos preparado fisicamente cansa mais rápido e terá falta de oxigênio no músculo e no sistema nervoso central, ou seja, no cérebro. Isso quer dizer que a tomada de decisão deste indivíduo vai ser completamente afetada porque não terá a mesma percepção nem a mesma velocidade de reação. Hoje com o VAR os erros claros e óbvios podem ser corrigidos, os rádios comunicadores com os árbitros assistentes também podem ajudar na tomada de decisão. Mas é importante que o árbitro esteja na sua melhor condição física e cognitiva para estar na parte do campo de jogo que entende ser adequada para analisar melhor a jogada que estiver ocorrendo e tenha a capacidade mental, cognitiva e intelectual para fazer a leitura do lance, a interpretação e tomar de decisão. Isto é, a condição física é extremamente importante para o jogo. Se o árbitro estiver cansado terá mais dificuldades em decidir e maiores chances de se equivocar. É importante citar que um estudo em Portugal mostrou que o árbitro percorre em média 12km por jogo, uma distância considerável.
RR: As características para atuar como VAR podem ser diferentes dos árbitros que atuam em campo?
PH: É claro que ter sido um árbitro de futebol pode ser um fator relevante para se tornar um árbitro de vídeo (VAR), pois quando estiver na frente do vídeo ter a capacidade de entender as regras do jogos, para saber se o árbitro em campo tomou a decisão correta, isso gera uma grande experiência para ser árbitro de vídeo. Porém, as características são muito distintas, um bom árbitro de campo pode não se dar bem como árbitro de vídeo ou vice-versa. Passa-se de uma situação tridimensional quando está em campo para uma bidimensional no VAR e são totalmente distintas. Há duas características muito importantes no árbitro de vídeo, uma é perceber o jogo e as regras, a outra é a capacidade mais técnica, que é quando se está analisando um lance e precisa dar uma resposta rápida para dentro do campo se a decisão tomada pelo árbitro foi correta ou não. O árbitro de vídeo tem diversos ângulos, quando estamos em casa analisando um lance, o fato de termos diversos ângulos e a melhor imagem faz com que se analise se a decisão do árbitro em campo foi correta ou não. Então, uma característica muito importante para o árbitro de vídeo é ter a capacidade de pedir ao técnico rapidamente a câmera certa ou as câmeras certas para buscar a melhor repetição, pois o estádio e o árbitro estão esperando uma resposta. Por exemplo, alguns jogos do Benfica ou Sporting chegam a ter 19 câmeras e o árbitro de vídeo não vai poder checar as 19, ver 19 ângulos diferentes, pois não terá tempo para isso, a rapidez é primordial, então vai verificar 2 ou 3 câmeras que tenha certeza que vão dar os melhores ângulos para a sua tomada de decisão. Por isso um árbitro de vídeo tem que conhecer muito bem todas as câmeras e os ângulos que elas oferecem. Tivemos erros em Portugal porque o árbitro de vídeo não teve a capacidade de pedir ao técnico de imagem as melhores câmeras com os melhores ângulos e por isso são características diferentes as dos árbitros em campo com os de vídeo. Por estes motivos os árbitros de vídeo pode ser integrados por ex jogadores ou ex treinadores, por exemplo, a equipe do VAR ter um árbitro ou ex árbitro e um AVAR ser uma outra pessoa ligada ao futebol que possa trazer uma outra perspectiva, outra análise daquilo que muitas vezes são características do jogador ou do jogo. Ou seja, ser árbitro de vídeo exige outras características que ter sido árbitro ajuda, mas não é primordial.
RR: Como treinar a tomada de decisão?
PH: Uma forma de treinar a tomada de decisão, isso faz parte até do meu livro, é recriar as situações que ocorrem no campo, isto é, recriamos situações de penalidades, escanteios, impedimentos. Isso é feito muitas vezes utilizando jogadores da categoria sub-15 que criam situações de jogo. Depois equipamos os árbitros com tudo que é utilizado por ele nos jogos, eles precisam tomar as decisões nos treinos, tudo é filmado e mostrado a eles com um feedback. Em Portugal, normalmente treinamos durante a semana as situações que ocorreram nos jogos do final de semana anterior, ou seja, recriamos para o treino de tomada de decisão além do treino físico. A filmagem ajuda para uma analise mais qualitativa do treino, podendo analisar com calma depois cada árbitro e dar um feedback mais completo. No meu livro, O Treino da Tomada de Decisão do Árbitro de Futebol, eu falo do treino da tomada de decisão do árbitro, como treinar e com exercícios demonstrativos para alcançar esse objetivo.
RR: Um árbitro iniciante tem mais dificuldades na tomada de decisão do que um árbitro de elite? Por que?
PH: É comum dizer que são precisos 10 anos de experiências para que uma determinada tese ou teoria se torne base da ciência. No futebol e na arbitragem é basicamente a mesma coisa, a experiência significa que eu vivi determinadas situações, as quais resolvi de determinadas maneiras, posso ter resolvido bem ou mal. A medida que vou tendo mais experiências eu vou repetindo circunstâncias que ocorreram no jogo, por exemplo, tem uma situação de um pênalti que eu errei e percebi que meu erro foi em função do meu posicionamento em campo e em outro jogo ocorre uma jogada igual, eu já vou me posicionar de uma forma proativa em um local que provavelmente vai ajudar a uma melhor tomada de decisão, diferentemente de quando tomei a minha decisão equivocada. Outro exemplo é quando a conflito entre dois jogadores, o árbitro já havia percebido que se “estranhavam” em campo, mas sequer aplicou advertência verbal e isso culminou em expulsões. Em uma próxima partida que isso acontecer com este árbitro, a experiência deve torna-lo mais proativo para tentar evitar que o conflito aconteça. Ou seja, quando o árbitro vai vivenciando situações com características já presenciadas anteriormente ele vai criando a capacidade de perceber o que vai acontecer em determinado lance e tem a capacidade por já ter vivido essa experiência de não cometer o mesmo erro e antecipar o cenário. Uma grande capacidade de um árbitro que está na elite é de ser proativo, por já ter vivendo por já ter tomado decisões e poder pensar se vai repetir ação ou modificar para não cometer o erro do passado. Além da capacidade do árbitro experiente ter a capacidade de ter vivenciado ambientes distintos com público, torcida com câmeras e ter a capacidade de se isolar de forma que isso não o afete. O árbitro de elite também consegue lidar melhor com o erro pós jogo, com uma crítica mais dura. O árbitro iniciante ou não tão experiente se deixa influenciar mais por estes fatores, não conseguem comer, dormir, treinar, vão para o próximo jogo ansiosos e isso aumentará os erros. O árbitro experiente supera isso de forma mais fácil, não deixando que isso o afete para o próximo jogo. Por isso a experiência é extremamente importante para um árbitro de futebol.