Na última quinta-feira (24/10), após o empate entre Corinthians e Racing pela semifinal da Copa Sul-Americana, a entrevista coletiva do técnico argentino Ramón Díaz chamou atenção não pela tradicional repercussão do pós-jogo, mas por sua fala envolvendo o atleta Giovane. O jogador vinha recebendo algumas oportunidades no banco de reservas nas partidas anteriores, mas não foi relacionado para a referida partida. Quando questionado por jornalistas sobre o fato de não ter relacionado o atleta, o treinador afirmou que ele, assim como outros dois jogadores (sem citar os nomes), está em processo de negociação de renovação de contrato (em tese, travado) e que não será escalado enquanto a situação não tiver uma resolução final. Consignou, ainda, que o atleta, ao receber proposta, não quis assinar e que “deveria ser grato ao clube”, e que a decisão de o afastar seria sua (e não da diretoria).
De imediato, um paralelo com o caso Bosman, que viemos repercutindo nas últimas semanas em nossa coluna, resultou inevitável. O que levou o atleta belga a romper com a estrutura vigente no futebol mundial à época foi exatamente o fato de os clubes se valerem do instituto do passe (ainda vigente até então) para chantagear os jogadores a renovarem seus contratos em condições desfavoráveis (com a fixação do passe em valores impagáveis), sabedores que persistiria a vinculação às agremiações mesmo após o seu término. O assédio moral era evidente.
Agora, algo similar ocorre. É sabido que o local de trabalho requer respeito, civilidade, educação e sensação de saúde (no sentido também de segurança), propiciando-se um ambiente saudável que permita ao trabalhador uma conciliação saudável entre sua via profissional, pessoal e social. O assédio moral seria fruto exatamente de condutas abusivas por parte do empregador que ferem os postulados acima e ofendem a dignidade o trabalhador, podendo ser efetivado por palavras, gestos e outros comportamentos.
O caso do atleta Giovane envolve o chamado assédio moral vertical, pois o treinador, seu superior hierárquico, o vitimiza valendo-se de sua autoridade. No episódio narrado, ficou claro que o clube aparentemente acabou por afastar o atleta como uma forma de chantagem ou de pressão pela renovação como se o mesmo tivesse cometido um ato de indisciplina por preferir não renovar o contrato vigente até o momento ou aguardar por mais tempo até tomar uma decisão final, certamente sabedor que o atleta é jovem e teria suas inseguranças naturais sobre o destino de sua carreira profissional. O fato de o treinador admitir que a decisão foi sua em nada serve como atenuante, pois, para todos os efeitos, ele é representante do clube. Para piorar, a confissão pública só fez ampliar o constrangimento e a situação vexatória à qual o atleta foi submetido, deixando ainda mais cristalino o assédio moral cometido. Resta inconteste que um assédio nesses moldes pode gerar insegurança, estresse, depressão e uma queda de desempenho profissional, o que poderá prejudicar o prosseguimento da carreira do atleta.
Parece cristalino que o clube possui a prerrogativa de afastar um atleta que eventualmente esteja em mau momento técnico (um verdadeiro direito potestativo), mas isso deve ocorrer de maneira respeitosa, sem que o mesmo passe por situação vexatória ou que seja impossibilitado de treinar junto aos demais atletas, até mesmo para que tenha a justa oportunidade de tentar reconquistar o seu espaço. Da mesma forma quando o jogador venha a cometer um ato de indisciplina, o que não é o caso.
Sob o ponto de vista trabalhista, como é de se supor, a atitude do treinador pode ter repercussões jurídicas importantes. Nos termos do art. 483 da CLT, o assédio moral pode funcionar como motivo hábil para o jogador pleitear a rescisão indireta do contrato de trabalho por conta do descumprimento de obrigações legais, a qual, na prática, funciona como uma espécie da justa causa do empregador e viabiliza que o atleta possa receber as verbas rescisórias como se estivesse sendo demitido sem justa causa. Além do mais, o referido dispositivo ainda possibilita que o empregado possa pleitear a devida indenização (por danos morais, materiais e/ou à imagem) em face do clube responsável pelo assédio.
Vale ressaltar, de qualquer maneira, que qualquer iniciativa do atleta nesse sentido dependerá da análise de todo o arcabouço probatório a ser apresentado judicialmente, mas é inegável que o técnico do Corinthians produziu prova contra si mesmo. Tais declarações funcionariam, ao menos, como forte indício da efetiva ocorrência do assédio moral, facilitando o eventual acesso à Justiça Trabalhista.
Este é o cenário jurídico que se apresenta, o que não significa que o atleta necessariamente deverá postular judicialmente a rescisão do contrato. Seu staff deve sopesar os prós e contras, até porque são conhecidas as repercussões e os desgastes que normalmente uma postura de maior enfrentamento traz ao trabalhador. A decisão deve ser estratégica, pois nem tudo é tudo é tão preto no branco como pode parecer.
Que o episódio sirva para efeito educativo e para uma maior conscientização das agremiações e de seus representantes, viabilizando uma mudança de comportamento. Especialmente no ambiente dos grandes clubes, cujos profissionais normalmente recebem rendimentos muito acima da média do trabalhador nacional, cria-se um imaginário de que os atletas com maior remuneração são máquinas sem sentimentos, receios e inseguranças, o que acaba resultando num ambiente permissivo, onde tudo vale. Não é bem assim.
Crédito imagem: Agência Corinthians
Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo