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O côncavo e o convexo

Aristóteles, em “Ética à Nicômaco”, ao explicar a composição da alma humana, valeu-se da geometria, usando analogicamente as curvas côncavas e convexas para fazer com que seu raciocínio se tornasse inteligível:

A alma tem uma parte racional (λογον εχον), e outra parte privada de razão (αλογον). Que elas sejam distintas como as partes do corpo ou de qualquer coisa divisível, ou distintas por definição, mas inseparáveis por natureza, como o côncavo e o convexo na circunferência de um círculo.

Inseparáveis por natureza, mas completamente distintas por definição: eis como são o côncavo e o convexo. Eis um raciocínio que se ajustaperfeitamente à relação entre um clube e a sua torcida.

Quanto ao primeiro aspecto, é bem de ver que um não existe sem o outro. É o clube que anima o movimento da torcida. Esta, por sua vez, é o sustentáculo para que a agremiação se mantenha e se eternize: uma sinergia tão grande que parecem que são um só.

Parafraseando a canção “Côncavo e Convexo”, de Roberto e Erasmo Carlos, pode-se dizer que entre eles ascurvas se acham e as “formas se encaixam na medida perfeita”, com “cada partetendo a forma ideal quando juntas estão.

Embora o encaixe seja perfeito, as diferenças são evidentes e inconfundíveis. Tal como na alma humana descrita por Aristóteles, a alma futebolísticaé composta por uma parte racional e outra irracional. O racional está plasmado no time de futebol. Elenco, comissão técnica e gestores estão ali exercendo sua profissão. São trabalhadores remunerados e quefazem do futebol o seu ganha pão.

A parte irracional é evidentemente a sua torcida. Elogios, críticas, louvores e xingamentos variam ao sabor das circunstâncias e os únicos vértices que determinam o curso dessas parábolas são apenas a vitória ou a derrota.

Mas as diferenças não param por aí, mormente aquelas de conotação jurídica.

Com a precisão de um ângulo reto, o Estatuto do Torcedor fez questão de separar estas duas metades. No Art. 2o-A, conceituou torcida organizadacomoa pessoa jurídica de direito privado ou existente de fato, que se organize para o fim de torcer e apoiar entidade de prática esportiva de qualquer natureza ou modalidade, reforçando que sua natureza jurídica é absolutamente inconfundível com a do clube.

Todavia, há muitos que ainda os confundem, principalmente quando punem o clube por atos praticados por suas torcidas. É especialmente o caso da Justiça Desportiva, que teima em girar o compasso para fora do circulo jurídico. Se um torcedor profere uma palavra racista, o clube é punido. Se ele arremessou seu chinelo, o clube é castigado. E se cantarola uma marchinha homofóbica, lá vai o clube sofrer de novo...

E isto deve-se a outra confusão que fazem: misturam responsabilidade civil com a disciplinar,embaralhando dever de indenizar com o descumprimento de um dever de conduta. Se um dano foi cometido por uma pessoa, pode ser que um terceiro seja obrigado a indenizar a vítima. Tal se dá porque, em algumas hipóteses, o direito estende a responsabilidade civil para além do causador do dano a fim de resguardar o crédito do lesado.

Assim, por exemplo, o fiador tem a obrigação de pagar a dívida do afiançado; o pai de pagar os danos causados pelo filho menor; o empregador de reparar estragos cometidos por seus empregados e etc, tudo na forma do art. 932 do Código Civil.

Mas na responsabilidade disciplinar a coisa muda de figura. Não é pelo fato de que um filho seja traficante que os seus pais terão necessariamente que ser punidos, porque aqui a aferição da conduta há de ser sempre individual.

Veja-se que o Estatuto do Torcedor distinguiu bem as situações: clubes respondem civilmente por danos cometidos pelas torcidas, mas são os torcedores que respondem criminalmente por seus próprios atos.

Resumindo, a responsabilidade civil pode surgir, em certos casos, mesmo que o responsável não tenha contribuido para o dano, enquanto que na responsabilidade disciplinar, a punição só pude surgir se a conduta do agente contrariar os padrões de comportamento exigiveis em determinada sociedade.

Assim, se a punição é a reprovação social de uma conduta, há que se verificar no caso concreto, se o comportamento daquela pessoa é mesmo reprovável, isto é, se o acusado agiu culposa ou dolosamente.

Aliás, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva não se esqueceu dessa fórmula. Com efeito, o art. 161, destaca que “Não há infração quando as circunstâncias que incidem sobre o fato são de tal ordem que impeçam que do agente se possa exigir conduta diversa”, ou seja, há que se perguntar sempre: o clube poderia ter feito algo para evitar que a infração ocorresse?

Como impedir, por exemplo, que um torcedor chame um jogador de “macaco”, entoe um canto homofóbico, ou resolva arremessar seu próprio chinelo no gramado?

Entretanto, a Justiça Desportiva não buscaresponder estas perguntas. Não procura saber se o clube efetivamente contribuiu para que o fato delituoso tivesse sido cometido por algum torcedor.Aliás, porque então instauram um processo se o clube não tem como se defender e já se sabe que a punição é certa?

A verdade é que se escolhe o caminho mais fácil, dando à sociedade uma falsa impressão deque a justiça está sendo feita.

Ocorre que, ao escolher o caminho mais facil, ela acaba tornando o problema mais dificil de ser solucionado. Não se resolve a questão, porque o verdadeiro infrator não foi punido e é por isso que as infrações não param de se repetir.

E não há desculpa. Com a tecnologia à disposição, através da identificação biométrica e doreconhecimento facial, não é difícil identificar os verdadeiros responsáveis.

Embora sejam evidentes as diferenças, não há esperança de que este panorama se altere, pois já virou praxe misturar coisas que, malgrado sejam afins, são absolutamente distintas entre si.

Como, por exemplo, confundir responsabilidade civil com a responsabilidade disciplinar.

O Clube com a sua torcida.

Ou o côncavo com o convexo.

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