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O julgamento do ano para Villa Nova e Guarani

Por Fernanda Soares

O Pleno do Tribunal de Justiça Desportiva de Minas Gerais tem em suas mãos um caso bastante interessante, cujo resultado determinará a queda de um clube mineiro à segunda divisão do campeonato regional. Hoje, dia 30 de abril, acontece o julgamento do recurso interposto pelo Villa Nova, que, há três semanas, viu a 4ª Comissão Disciplinar do Tribunal lhe aplicar a punição de perda de 16 pontos e multa de R$ 8.000 pela escalação irregular do atleta Pinguim em quatro jogos do Campeonato Mineiro, o que, na minha visão, foi equivocado.

O caso é interessante porque há o debate de diferentes entendimentos sobre a aplicação das normas do direito esportivo. Trata-se da seguinte situação: no dia 25.07.2018, em jogo pelo Campeonato Mineiro Sub-20 contra o América-TO, o atleta do Villa Nova Vitor Hugo do Espírito Santo, vulgo “Pinguim”, foi expulso por reclamações acintosas no banco de reservas. Julgado pelo TJD, recebeu a punição de quatro jogos de suspensão (artigo 258 do CBJD). Cumpriu a primeira suspensão (automática) no jogo imediatamente subsequente ao da expulsão. Em 2019 o atleta foi incorporado à equipe principal e passou a disputar o Campeonato Mineiro profissional. Cumpriu a segunda suspensão na primeira rodada desse campeonato (jogo contra o Tupynambás), restando, assim, cumprir a suspensão em mais duas partidas. Entretanto, o atleta jogou as duas partidas subsequentes, nas quais não poderia ter atuado. Essas partidas ocorreram nos dias 24.01.2019 e 27.01.2019. Portanto, nesses dias, o jogador estava em situação irregular. No dia 30.01.2019, data da partida posterior, o jogador não foi relacionado. Nas partidas subsequentes, de 03.02.2019 e 10.02.2019, atuou. Finalmente, na partida do dia 16.02.2019, não foi relacionado.

Essa data – 16.02.2019 – é a que, para muitos, marca o fim do cumprimento da punição aplicada. O quadro abaixo facilita a visualização das datas; é fundamental que a linha do tempo fique clara para compreendermos os debates:

Data Ocorrência
25.07.2018 Expulsão (Partida pelo Campeonato Mineiro Sub-20).
28.07.2018 Cumprimento da suspensão automática (Partida pelo Campeonato Mineiro Sub-20).
20.01.2019 Cumprimento da 2ª suspensão
24.01.2019 Atuou na partida contra o América
27.01.2019 Atuou na partida contra o Guarani
30.01.2019 Não relacionado
03.02.2019 Atuou na partida contra o Cruzeiro
10.02.2019 Atuou na partida contra o Patrocinense
16.02.2019 Não relacionado

Pois bem, no dia 02.04.2019 a Procuradoria ofereceu a denúncia em face do Villa Nova, a partir de uma Notícia de Infração apresentada pelo Guarani no dia anterior. O Guarani é terceiro interventor no processo, já que tem interesse na condenação do Villa Nova, que acabaria por manter o Guarani na elite do futebol mineiro. Veja a parte de baixo da tabela do Campeonato Mineiro de 2019:

Nesse cenário, a 4ª Comissão Disciplinar do TJD/MG (“1ª instância” da Justiça Desportiva) entendeu por acolher a denúncia da Procuradoria e condenar o Villa Nova à perda de 16 pontos no Campeonato Mineiro de 2019, além da multa de R$ 8.000. A Comissão considerou que o jogador atuou de forma irregular nas partidas do dia 24.01.2019, 27.01.2019, 03.02.2019 e 10.02.2019, portanto infringindo o artigo 214 do CBJD por quatro vezes.

Não concordei com a decisão da Comissão e estou bastante curiosa para saber o que o Pleno decidirá hoje. É que entendo que houve prescrição da pretensão punitiva, ou seja, não há mais que se falar em punir o Villa Nova por uma infração cometida em 27.01.2019. E aqui nessa tese parto de duas premissas que estão sob debate (que é o que torna o caso interessante): 1) o atleta não estava irregular nos dias 03.02.2019 e 10.02.2019 e; 2) a prescrição ocorre em 60 dias, contados da data da infração. Vamos analisar cada uma para entender melhor essa discussão.

1) A forma de aplicação das penas de suspensão por partida

O debate sobre se o atleta estava ou não irregular nos dias 03.02.2019 e 10.02.2019 passa pelo entendimento sobre a forma de aplicação das penas. Aqui precisaremos do artigo 171, §1º, do CBJD, que nos orienta no seguinte sentido:

Art. 171. A suspensão por partida, prova ou equivalente será cumprida na mesma competição, torneio ou campeonato em que se verificou a infração.
§ 1º Quando a suspensão não puder ser cumprida na mesma competição, campeonato ou torneio em que se verificou a infração, deverá ser cumprida na partida, prova ou equivalente subsequente de competição, campeonato ou torneio realizado pela mesma entidade de administração ou, desde que requerido pelo punido e a critério do Presidente do órgão judicante, na forma de medida de interesse social.

O artigo é claro quando fala que a suspensão deve ser cumprida nas partidas subsequentes ao cometimento da infração. Isso impede que o clube ou atleta escolham as partidas em que vão cumprir a punição, o que seria grave afronta ao princípio da paridade de armas.

No caso concreto as datas nas quais o atleta do Villa deveria ter cumprido a suspensão eram 28.07.2018, 20.01.2019, 24.01.2019 e 27.01.2019 (partidas subsequentes à infração, como previsto no CBJD). Ou seja, no dia 28.01.2019 o atleta não mais está irregular. Quando o atleta atuou nas duas últimas partidas (24 e 27 de janeiro), ele cometeu uma infração nova, punível pelo mesmo artigo 214 e também pelo artigo 223, que pune quem deixa de cumprir determinação da Justiça Desportiva. Ora, se é uma nova infração, deveria haver novo julgamento e nova condenação. Nesse sentido, considerar o atleta irregular nas partidas dos dias 03.02.2019 e 10.02.2019 é aplicar a punição pela nova infração sem que o atleta fosse julgado por ela.

Como visto, não foi esse o entendimento da 4ª Comissão. A maioria dos auditores considerou que o atleta ainda estava irregular nos dias 03.02.2019 e 10.02.2019, já que deveria ter cumprido a suspensão nas partidas anteriores. Nesse sentido, o atleta apenas teria cumprido o restante da punição nos dias 30.01.2019 e 16.02.2019, quando não foi relacionado.

2) Prescrição

Partindo da premissa de que a suspensão deve ser cumprida nas partidas subsequentes e que o não cumprimento dessa suspensão configurou nova infração (sendo, portanto, necessário novo julgamento, que não ocorreu), a última partida em que o atleta do Villa Nova atuou de forma irregular foi a do dia 27.01.2019. O CBJD trata da prescrição no artigo 165-A; o § 6º dedica-se a regular o ponto de partida da prescrição, ou seja, a partir de quando ela começa a ser contada. Vejamos:

§ 6º A pretensão punitiva disciplinar conta-se:
a) do dia em que a infração se consumou;
b) do dia em que cessou a atividade infracional, no caso de tentativa;
c) do dia em que cessou a permanência ou continuidade, nos casos de infrações permanentes ou continuadas;
d) do dia em que o fato se tornou conhecido pela Procuradoria, nos casos em que a infração, por sua natureza, só puder ser conhecida em momento posterior àqueles mencionados nas alíneas anteriores, como nos casos de falsidade.

A 4ª Comissão entendeu que o caso do Villa Nova se encaixa no descrito na alínea “d” e considerou que a prescrição começou a contar a partir do dia em que o Guarani enviou a Notícia de Infração à Procuradoria (dia 01.04.2019). A justificativa para tal entendimento é a de que a Procuradoria, órgão responsável pela fiscalização e conferência de irregularidades de atletas e único órgão responsável por oferecer denúncia na Justiça Desportiva, não teria condições de, na prática, exercer tal fiscalização. Nesse entendimento, não haveria “meios estruturais” que permitissem à Procuradoria consultar a situação de cada atleta relacionado nas súmulas dos jogos.

Novamente, discordo da posição da maioria dos auditores da 4ª Comissão. Entendo que a Procuradoria (e os auditores) da Justiça Desportiva oferecem seu trabalho de forma voluntária e que são muitas as partidas e os atletas que atuam, fazendo com que a fiscalização se torne árdua. Mas também entendo que, se o sistema não está adequado à realidade diária, que se mude o sistema. A prescrição existe por um motivo importante: traz segurança jurídica. Permitir que se estenda a pretensão punitiva pela falta de estrutura da Procuradoria seria o mesmo que permitir que a Receita Federal exceda os cinco anos de prazo para verificar as mais de 90 milhões de declarações de Imposto de Renda por falta de auditores.

A alínea “d” do referido artigo é clara quando fala sobre as infrações que, pela natureza, só podem ser conhecidas em momento posterior. Ora, não é o caso aqui. Infrações da natureza das cometidas pelo atleta do Villa Nova podem (e são) conhecidas a partir da publicação da Súmula. Cabe à Procuradoria a verificação e, se for o caso, oferecer a denúncia ao Tribunal.

Portanto, entendo que a alínea a ser observada nesse caso é a “a”, que diz que se conta a prescrição a partir do dia em que a infração se consumou, ou seja, 27.01.2019. Como a pretensão punitiva, nesse caso, prescreve em 60 dias, não há mais que se falar em punição, já que a denúncia data de 02.04.2019.

Falei do princípio da paridade de armas e ressalto outro princípio bastante caro ao direito esportivo: o pro competitione que visa a prevalência, continuidade e estabilidade das competições. É fundamental prestigiar o resultado obtido em campo, obviamente não em detrimento da justiça nem esquecendo os outros princípios. Mas frente a um debate como o de hoje, em que há diferentes interpretações para a norma posta, entendo ser fundamental prestigiar a interpretação que respeita o resultado desportivo. Na dúvida, pró-competição.

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