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O lucro nas sociedades desportivas da França

Rafael Teixeira Ramos e Ana Cristina Mizutori [1]

A coluna da semana passada trouxe o panorama espanhol, e hoje, a abordagem será sobre o arcabouço societário e desportivo da França. Nas próximas semanas, o enfoque passará para outros ordenamentos jurídicos, até que seja possível fazer um comparativo, um contraponto entre os atributos e as imprecisões que podem e devem ser ajustadas na legislação brasileira.

Na França, a base legal que norteia questões societárias é a Lei nº 84/610, tendo sido editada em 1984, após o que passou por cinco alterações que serão aqui examinadas.

A Lei nº 84/610 impôs a obrigação das associações desportivas que participem de competições oficiais organizadas pela federação francesa, aufiram rendas e contratem atletas, a constituírem-se em sociedades anônimas, através da organização em estatuto fixado pelo Conselho de Estado, órgão responsável também por instituir o limite dos valores arrecadados pelos clubes disputantes e do montante a ser pago para o atleta, como regra cumulativa para alcançar a referida exigência.

Da constituição em sociedade anônima, a lei francesa prevê a possibilidade de ser sociedade anônima com objeto desportivo (SAOS), sociedade anônima de economia mista desportiva local (SAEMSL) ou associação “à obligations renforcées”. Os dois primeiros regimes jurídicos são representados por ações nominativas, sendo o capital da SAOS pertencente à associação desportiva, enquanto a SAEMSL pode ter seu capital para pessoas coletivas de direito público, mantendo com a associação o maior capital social e maioria de votos no órgão deliberativo.

A cautela do legislador francês em editar aludida redação legal remete à concepção de que este modelo societário conta com diversos instrumentos para a crucial estruturação financeira e administrativa da entidade, conferindo aptidões profissionais na condução destas entidades, em congruência com o que se demanda em competições oficiais.

Tal inferência se dá porque nos anos seguintes da entrada da Lei nº 84-610 em vigor, passou-se a permitir exceções à associações desportivas que, ainda que participassem de competições oficiais, auferissem renda e remunerassem seus atletas em valores acima do que impunha o Conselho de Estado, estes poderiam manter-se no regime associativo, desde que se verificadas a governança e a adequada gestão financeira, de forma a garantir a manutenção de superávit por dois anos consecutivos, impondo-se algumas regras para assegurar essas condições.

Associações e sociedades desportivas sistematizam os seus direitos e obrigações através de convenção, a qual passa a vigorar após aprovação da assembleia geral, sendo vedada a previsão de distribuição dos lucros aos acionistas e a remuneração dos dirigentes, compondo um regime jurídico híbrido. O lucro obtido deve ser direcionado à constituição de reservas.

Durante a vigência da Lei nº 84-610 até a sua primeira alteração, em 1992, contava-se com a associação “à obligations renforcées”, cujo sentido era de inserir um responsável para deliberar sobre as associações e as determinações da assembleia, ampliando o controle desta entidade, ainda que mantivesse seu regime jurídico associativo.

Outra modificação relevante que se deu em 1992 foi a supressão da obrigatoriedade de a associação deter a maior parte do capital social, o que poderia causar a mitigação da essência esportiva naquela entidade, motivo pelo qual se estabeleceu um controle administrativo, a fim de amparar o cerne esportivo, vulnerável com a maior abertura do capital social.

Em 1999, a legislação passou por modificações, excluindo a previsão da associação “à obligations renforcées”, além de restringir a manutenção das SAEMSL somente para aquelas que haviam sido anteriormente constituídas.   Referida alteração instituiu a empresa unipessoal desportiva de responsabilidade limitada (EURSL) e a sociedade anônima desportiva profissional (SASP), e passou a estabelecer que apenas uma das regras seria apta para impor a obrigatoriedade das associações se constituírem em sociedade anônima, isto é, ou participar de competições oficiais, ou auferir renda e remunerar atletas acima de um certo valor.

Mais uma renovação legal, em 1999, passou a extinguir de vez a associação “à obligations renforcées” no âmbito profissional ainda existentes pela constituição anterior a alteração legislativa de 1992, permitindo-as somente para modalidades amadoras.

Na EURSL, o dirigente desta sociedade não pode ser a mesma pessoa que o representante da associação desportiva, além de também vedar a distribuição de lucros a este único associado, baseado sob a égide do regime das sociedades de responsabilidade limitada, com a diferença que na EURSL, permite-se um único sócio.

Por sua vez, na sociedade anônima desportiva profissional (SASP), permite-se a distribuição de dividendos e remuneração de seus dirigentes, sem qualquer restrição quanto a capital mínimo a ser detido pela associação. Trata-se de um tipo societário que se adequa às especificidades do futebol, porém, aproximando-se à sociedade anônima comum, viabilizando maior introdução de capital por meio de investimentos externos, o que arrastou muitos clubes a adotarem este regime jurídico.

Em 2003, as sociedades desportivas puderam deter a denominação, símbolos e marcas, além de passarem a receber da respectiva federação os proveitos da cessão dos direitos de transmissão, que são comercializados pela liga profissional.

Constata-se que as alterações da legislação na França caminharam entre as particularidades do associativismo e as propriedades societárias e concorrenciais adentrando em um modelo anômalo que, apesar de atender bem o mercado, ainda pode ser aprimorado e mais assertivo, restando um grande campo de estudo a ser construído sobre o tema.

Destaque-se a marca profícua na legislação francesa, que é a cautela quanto aos acionistas não se valerem somente da finalidade financeira, impondo-se em todas as espécies societárias acima expostas, medidas para o controle qualitativo, a fim de se preservar o desígnio esportivo, como indica a obstrução de um investidor deter capital de mais de uma sociedade de “objeto desportivo relativo à mesma disciplina”².

Nota-se o intento do legislador francês em conservar as entidades desportivas, de forma que não sejam simplesmente lançadas ao investidor.

A exigência legal de transfiguração associativa para societária pretende a estabilidade financeira e a atenção às normas concorrenciais como escopo, mas não sem o desvelo necessário para manter o espírito e a ética desportiva sempre presentes, exercido através do princípio de solidariedade entre as sociedades desportivas profissionais, as associações desportivas amadoras, a liga e a federação.

……….

[1] Mestranda em Direito Desportivo na PUC/SP; advogada desportiva no escritório Manssur, Belfiore, Gomes e Hanna Advogados; membro da Comissão Jovem da Academia Nacional de Direito Desportivo; auditora vice-presidente da 1ª Comissão Disciplinar do STJD do Futsal; auditora auxiliar do STJD do Futebol.

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