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O risco e a responsabilização pela lesão cerebral nos esportes de combate

Por Rafael Ramos e Elthon Costa

No esporte de combate, golpes na cabeça não são apenas acidentais, mas um fator determinante e claro na busca pelo resultado, que é a vitória. A concussão é uma lesão complexa que é mal compreendida e práticas inadequadas são frequentemente observadas entre atletas e treinadores. Nesse ínterim, determinadas modalidades esportivas como MMA e boxe são vistas por alguns como controversas porque expõem atletas a potenciais concussões.

A questão é que há pouco esclarecimento por parte de professores e técnicos quanto à possíveis lesões cerebrais sofridas por praticantes de esportes de combate. Um estudo[1] recente demonstrou que apenas 5,7% dos técnicos reconhecem adequadamente o nível de traumatismo cerebral que uma concussão representa, 68,8% não estão familiarizados com nenhuma ferramenta de avaliação e apenas 14,3% frequentemente buscam conhecimento sobre concussão.

Cabe a reflexão de que eventuais impactos prejudiciais impostos ao praticante são frutos da adesão equivocada por parte dos profissionais que estão à frente da docência na iniciação esportiva em relação à algum método mais agressivo de ensino. A chamada “especialização esportiva precoce” (EEP)[2], prática que preza pelo imediatismo esportivo, através da qual os professores buscam “peneirar” atletas para detectar um possível talento em suas turmas, submetendo os alunos desde cedo às mais duras metodologias de ensino da modalidade, pode ocasionar ao jovem atleta – no caso dos esportes de combate – graves lesões cerebrais, uma vez que ele é submetido muito cedo a golpes na cabeça com o objetivo de se “condicionar” o praticante e acostumá-lo ao impacto.

Os riscos de lesão cerebral estão sempre presentes na prática de esportes de combate, principalmente no âmbito profissional. O boxeador sul-africano Simiso Buthelezi, 24 anos, morreu[3] na terça-feira à noite, 8 de junho de 2022, dois dias após ter sido colocado em coma induzido após uma luta profissional de boxe. Buthelezi foi levado ao hospital no domingo depois de um final bizarro de sua luta com Siphesihle Mntungwa. Buthelezi estava aparentemente caminhando para a vitória depois de colocado seu oponente nas cordas. Porém, durante o 10º e último round, ele visivelmente ficou atordoado e começou a dar socos no espaço vazio do outro lado do ringue. O boxeador desmaiou logo após o incidente e foi levado para receber tratamento médico urgente, mas, infelizmente, ele faleceu apenas dois dias depois, tendo os médicos confirmado que ele havia sofrido uma hemorragia grave no cérebro.

Não há evidências ainda se a lesão do lutador sul-africano fora causada durante a luta, mas há grandes chances que esta tenha resultado de treinos com impactos na cabeça sem o uso adequado de equipamento de proteção, tendo o dano cerebral se agravado durante o combate. Simiso começou a boxear desde cedo e estava apenas em sua 5ª luta profissional, com uma carreira ainda recente, que começou em 2019. Isto leva-nos a crer que as lesões cerebrais podem ter sido ocasionadas mais por conta dos métodos de treino do que das lutas em si. Porém, seu treinador alegou que “não havia nada de impróprio no que diz respeito à sua condição” e que Simiso “estava em boa situação antes da luta”.

No Brasil, a relação havida entre aluno e academia, a qual fornece o professor de artes marciais, sem dúvidas, amolda-se como de consumo, nos termos dos artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor, aplicando-se, portanto, a responsabilidade objetiva – independentemente de culpa do estabelecimento comercial – para casos dessa natureza.

Observa-se, contudo, que apesar da responsabilidade do prestador de serviços ser objetiva, deve-se haver comprovação subjetiva da culpa do professor que ministra a aula de artes marciais, sob pena de inexistir dever de indenizar. No caso da lesão cerebral do atleta causada por negligência do técnico ou professor de artes marciais, há o entendimento de que o produto ou serviço, mesmo quando dotado de certo grau de periculosidade, não pode, utilizando os termos do art. 14, §1º, II, do CDC, ultrapassar “os riscos que razoavelmente dele (produto ou serviço) se esperam”.

Sendo assim, caberia também a indenização por parte da academia com base não só no CDC, mas também aplicando o Código Civil, eis que ambos se fundam, nesse caso, na responsabilidade objetiva:

“Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:

(…)

III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;”

Em maio de 2022, a Comissão Atlética do Kansas (órgão estatal responsável pela sanção de esportes de combate no estado norte-americano) anunciou[4] uma decisão sem precedentes que poderá ajudar a proteger as novas gerações de atletas de esportes de combate se implementada de maneira geral. O órgão revelou que agora incluirá o conhecimento em saúde cerebral como um requisito para licenciar lutadores e seus segundos para competir no estado. Ou seja, só serão licenciados atletas e técnicos com conhecimentos em lesões cerebrais causadas pela prática esportiva.

Muito tem sido feito para melhorar as medidas de segurança para limitar ferimentos graves e fatalidades em esportes de combate. Porém, muito ainda precisar ser feito, começando pela conscientização dos riscos por parte de atletas e treinadores em relação aos métodos de treino desenvolvidos.

Crédito imagem: UFC

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Elthon Costa é advogado trabalhista e desportivo. É Sócio-Diretor Trabalhista e Desportivo no Todde Advogados e Membro da Diretoria e Pesquisador do Grupo de Estudos e Desporto São Judas (GEDD-SJ) e da Comissão de Direito Desportivo da OAB/DF e da Comissão de Direito Desportivo da OAB/SP Subseção de Osasco. @elthoncosta

[1] FOLLMER, Bruno; VARGA, Aaron Alexander; ZEHR, E. Paul. Understanding concussion knowledge and behavior among mixed martial arts, boxing, kickboxing, and Muay Thai athletes and coaches. Phys Sportsmed, Site, ano 2020, v. 48, n. 4, p. 417-423, 26 fev. 2020. DOI 10.1080/00913847.2020.1729668. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/00913847.2020.1729668?journalCode=ipsm20. Acesso em: 15 jun. 2022.

[2] ANTUNES, Marcelo Moreira; MOURA, Diego Luz (org.). Dialogando com as lutas, artes marciais e esportes de combate. 1ª. ed. Curitiba: CRV, 2021. v. 1. p. 36

[3] AG FIGHT. Boxeador que ficou desorientado durante luta morre devido a sangramento cerebral. In: ESPN BR, Site, 8 jun. 2022. Disponível em: https://www.espn.com.br/mma/artigo/_/id/10485732/boxeador-que-ficou-desorientado-durante-luta-morre-devido-a-sangramento-cerebral.  Acesso em 15 jun. 2022.

[4] REARDON, Lisa T. In Historic Move, Kansas Athletic Commission Adds Brain Health Knowledge As Requirement To Compete In MMA. In: UFC 235, Site, 15 mai. 2022. Disponível em: https://ufc235.com/in-historic-move-kansas-athletic-commission-adds-brain-health-knowledge-as-requirement-to-compete-in-mma. Acesso em 15 jun. 2022.

 

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