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O sonho de Ícaro

Por Tom Assmar

Em uma das estórias mais conhecidas da mitologia grega, Ícaro e seu pai Dédalo foram condenados a viverem presos no labirinto do Minotauro na ilha de Creta. Decidiram fugir criando asas com penas de pássaros e cera de abelha, para que então pudessem voar o mais alto possível e escapar do seu destino de isolamento. Ao se encantar com o que foi capaz de fazer, Ícaro deixa de seguir os conselhos do pai e passa a voar cada vez mais alto, até o ponto em que sua proximidade do Sol derrete a cera que colava suas asas e o condena a cair de volta à Terra, para então morrer nas profundezas do mar Egeu.

Desde então, sua lenda vem sendo usada como metáfora perfeita para analisar os riscos inerentes aos nossos sonhos e desejos. Afinal, a busca incessante por um futuro melhor não é uma das formas que usamos para escapar das nossas “prisões” cotidianas? Por outro lado, chegar tão perto do Sol também não nos ensina sobre a importância de encontrar a altura correta dos nossos voos e saber a hora de reconhecer os nossos limites?

A minha vida eu preciso mudar, todo dia pra escapar, da rotina, dos meus desejos por seus beijos

Dos meus sonhos, eu procuro acordar e perseguir meus sonhos

Mas a realidade que vem depois não é bem aquela que planejei

Eu quero sempre mais

Eu quero sempre mais

Eu quero sempre mais – IRA

A busca contínua pelo crescimento e a ambição permanente pela conquista são valores consolidados na vida de indivíduos e empresas. Formatados nesse ambiente social, clubes de futebol não poderiam pensar de forma diferente. Cada vez menos um esporte e mais um negócio, seus planos de futuro tendem a seguir a mesma lógica do modelo empresarial ao buscar ampliar mercado e faturamento, conquistar mais torcedores e transformá-los em consumidores mais rentáveis, capazes não apenas de amar e torcer mas acima de tudo de transformar essa paixão em hábitos de consumo, adquirindo os mais diversos produtos que essa relação possa oferecer (jogos, conteúdos ou experiências). Não basta mais ser apenas torcedor. É preciso ser sócio torcedor. Mais ainda: é preciso ser um consumidor sócio torcedor.

Por si só, crescer não é um problema. O problema é a forma como nos preparamos para isso. Sistemas de gestão eficientes sustentam esse crescimento a partir de 4 pilares: estratégia, estrutura, processo e recurso. O caminho mais lógico e eficiente é aquele em que primeiro definimos a estratégia, a estratégia então desenha a estrutura, a estrutura organiza os processos e os processos alocam os recursos humanos, financeiros e materiais necessários. Se nossos clubes agissem dessa forma, eles deveriam primeiro escolher um diretor de futebol que definisse uma estratégia de jogo. Ele então escolheria uma comissão técnica alinhada a esse pensamento, que por sua vez usaria sistemas de análise de desempenho para então montar um elenco coerente com esses princípios. Como lógica e eficiência raramente jogam bola nos nossos gramados, na maioria absoluta dos nossos clubes o que encontramos é exatamente o oposto. E como os resultados não aparecem, então um novo técnico é escolhido graças à sua experiência e liderança para “salvar” elencos que não entregam resultados, ficando em média de 4 a 6 meses no cargo e deixando praticamente nenhum legado tático ou de formação de elenco. Não dá para acreditar que esse modelo possa gerar um produto de qualidade. É óbvio que isso não pode dar certo. Ninguém constrói excelência em ciclos de curto prazo. Normalmente, a natureza pune os impacientes.

Clubes também põem em risco seu futuro ao não entenderem o real tamanho das suas capacidades atuais, criando desequilíbrios financeiros entre receitas e despesas muitas vezes irreversíveis. O esporte nos traz mais uma lição de vida ao nos mostrar que os ciclos de vitórias e derrotas são inevitáveis, e que não há clubes eternamente invencíveis ou derrotados. Vencendo ou perdendo, aqueles que possuam planos de longo prazo e bom sistema de governança tenderão a tomar melhores decisões com base no bom senso, no equilíbrio e na sustentabilidade do seu projeto. Por outro lado, os que se deixam dominar pelas pressões do momento agem para atingir objetivos imediatos, desperdiçando recursos preciosos que poderiam ser usados para construir um futuro mais consistente. A pressão por sair de um labirinto nos leva a criar asas com cera de abelha, que até podem servir para nos tirar do isolamento, mas certamente não nos levarão a lugares mais altos.

A ilusão do crescimento a qualquer custo quebra muito mais empresas do que a falta de novas oportunidades. No futebol, a queda de vários clubes tradicionais ensina que a busca irresponsável por títulos sempre cobra seu preço. E não adianta achar que virar clube empresa é a solução definitiva para todos os seus problemas. Empresas também podem ser ineficientes e tomar decisões erradas. Além disso, o torcedor brasileiro de um grande clube tradicional estará realmente preparado para ver o objeto do seu amor virar o ativo empresarial de um grupo de investimento? Aceitará perder capacidade de influência e controle sobre as decisões tomadas? Como quem paga a banda escolhe a música, é bom começar a se preparar para ouvir um novo repertório.

Dizem que sonhar não custa nada. Será mesmo? Tenho minhas dúvidas. Se no mundo das lendas o voo de Ícaro nos ensina que o mesmo Sol que ilumina é aquele que queima quem se expõe demais, na vida real é fácil perceber que tudo o que desejamos e fazemos tem um preço a pagar, seja financeiro, físico ou emocional. Por isso, o desafio de crescer passa sempre pela capacidade de encontrar a dose certa de ambição e prudência. Clubes que investirem em projetos de longo prazo executados com planejamento, governança e transparência terão mais chances de identificar e se proteger dos atalhos que são desvios e dos sonhos que viram ilusões. Não é fácil encontrar a distância certa do Sol. Mas ela existe, e certamente estará em algum lugar entre o céu e o mar. E para aqueles que desejarem voar mais perto do infinito, é sempre seguro dispor de asas um pouco mais resistentes.

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Crédito foto: iStock, Thiprot

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Tom Assmar tem graduação e mestrado em Administração, e atua há mais de 25 anos com gestão, planejamento e finanças. Acredita que o futuro do nosso futebol passa necessariamente pela formatação de um produto que atenda aos interesses coletivos e pela qualificação da gestão dos clubes. É sócio do Futebol S/A.

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