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“Obrigado por tudo, professor. Até um dia.”

Por Luiz Felipe Guimarães Santoro

Faz quase um ano que o professor Álvaro Melo Filho nos deixou. Partiu em 6 de agosto de 2019, logo após completar mais um aniversário, em 31 de julho.

O conheci em 1994, quando pouquíssimas pessoas falavam sobre Direito Desportivo no Brasil. Eu, no segundo ano da Faculdade de Direito; ele, um mestre reconhecido e respeitado, que havia recentemente auxiliado Zico na elaboração da lei que veio a receber, merecidamente, a alcunha deste outro grande mestre brasileiro.

Me lembro quando relatei ao professor Álvaro minha “história” profissional até então. Eu havia começado meu primeiro estágio num escritório de advocacia numa segunda-feira, dia 5 de julho de 1993. Na quarta, dia 7, foi publicada no Diário Oficial a Lei n. 8.672/93, de 6 de julho de 1993, conhecida como Lei Zico. Como os primeiros dias de estágio de um jovem estudante de Direito são repletos de viagens de ônibus a fóruns longínquos, eu levava a Lei Zico a tiracolo, junto com as fichas de acompanhamento processual, e ia lendo aqueles dispositivos legais que me fascinavam, mas que eu jamais teria a oportunidade de estudar na faculdade.

Foi então que, em conjunto com outros colegas da AAA XI de Agosto, organizamos, em 1994, o I Seminário de Direito e Justiça Desportiva na Faculdade de Direito da USP, evento que contou com a ilustre e imprescindível participação do professor Álvaro.

Homem de raro conhecimento, íntegro e professor na acepção mais genuína desse nobilíssimo mister. Foi um dos maiores entusiastas da criação do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, em 2001, entidade que tive a felicidade de presidir em 2007-2009 e 2010-2012. Em 2004, o IBDD instituiu o “Prêmio Álvaro Melo Filho”, conferido à melhor monografia apresentada por estudantes. Um ano antes havia sido criado o “Prêmio Valed Perry”, outorgado à melhor monografia apresentada por graduados, cujo primeiro ganhador, como não poderia deixar de ser, foi o professor Álvaro. Quando deixei a presidência do Instituto, em 2012, ele me brindou com um belíssimo discurso de despedida. Guardo com muito carinho o manuscrito daquelas emocionantes palavras.

Ele se orgulhava de ser o único autor a publicar artigos em todos os volumes da Revista Brasileira de Direito Desportivo do IBDD. Em homenagem ao professor, o volume 30 da RBDD, publicado em 2018, foi inteiramente dedicado a ele, com uma coletânea de seus 29 artigos publicados nos volumes anteriores, além de um artigo inédito de sua lavra para a revista comemorativa.

Fomos, ainda, companheiros na Academia Nacional de Direito Desportivo, na Sociedade Brasileira de Direito Desportivo, na Comissão de Estudos Jurídicos Desportivos do Conselho Nacional do Esporte e na Comissão de Juristas responsável pela elaboração do Anteprojeto da Lei Geral do Desporto Brasileiro, designada pelo Senado Federal.

Tive a honra de trabalhar com ele em diversos projetos profissionais desenvolvidos para importantes entidades do esporte brasileiro. Tive, também, o privilégio de com ele dividir a mesa e os debates em incontáveis eventos acadêmicos. Mas mais que isso, tive a dádiva de tê-lo como amigo. Um ser humano generoso, desprendido e altruísta, que concluía inúmeras de suas palestras citando uma frase lapidar de seu conterrâneo Dom Hélder Câmara: “Se você diverge de mim, não é meu inimigo. Você me completa.

Em 2018, decidimos escrever um livro em conjunto. Cada um redigia seus capítulos e enviava para revisão e ajustes do outro. O título foi sugestão dele: “Direito do Futebol – marcos jurídicos e linhas mestras”. Nosso livro foi publicado em março de 2019, pela editora Quartier Latin, quando o professor já estava acamado e com a saúde debilitada. A dedicatória dele transcrevo aqui, pois homenageia uma guerreira, uma mulher de fibra, companheira zelosa e incansável: “À minha dedicada mulher, Naiula, Anjo Protetor de todas as horas, razão de ser de todas as vitórias conquistadas e partícipe de todos os momentos vivenciados, meu eterno carinho e amor”.

Naiula me presenteou com o marcador de livro por ela confeccionado com enorme esmero e afeto para a Celebração da Esperança, promovida por ocasião do sétimo dia do falecimento do professor Álvaro. Essa inestimável lembrança, que passou a acompanhar todas as minhas leituras, traz gravada uma das frases prediletas do Professor: “Transforme seus sonhos em realidade, procurando sempre tocar o céu, sem tirar os pés do chão.”

Ele dizia que sua maior “medalha” era a redação do artigo 217 da Constituição Federal de 1988, de sua autoria, que garantiu autonomia às entidades esportivas quanto à sua organização e funcionamento, um princípio constitucional tão valioso para o desporto de nosso país.

Num momento como o atual, em que o art. 217 da CF sofre várias tentativas de agressão, impossível não lembrarmos de textos nada recentes, porém atualíssimos, do prof. Álvaro (disponíveis na íntegra em www.migalhas.com.br):

Os problemas do futebol brasileiro não têm solução mágica, não se resolvem pela opção falsa entre “o caos criativo e a ordem opressiva”, nem se superam pela revogação fática ou pelo vilipêndio do postulado constitucional da autonomia desportiva para dar lugar à intervenção do Estado em entes desportivos privados. O que o futebol está a exigir, não é o desserviço daqueles que simulam advogar os sentimentos da “sociedade futebolizada”, mas a essencial mudança de mentalidade e de postura de todos os seus segmentos para transformar e reinventar as próprias noções de liberdade e responsabilidade, pois, mais importante do que leis escritas, são normas inscritas na mente e no coração de todos nós. (2003)

Vê-se, então, que a Lei Pelé, com seus paradoxos e casuísmos, tornou os empresários ricos, os atletas ciganos e os clubes falidos, e, seus inúmeros “remendos” ainda não foram suficientes para construir uma legislação desportiva realista, justa e consistente. (2005)

De todo modo, mesmo “jogando para a plateia” a nova legislação lança sementes fertilizantes no campo desportivo, tanto motivando a livre iniciativa no efetivo contributo ao acesso universal, equânime e permanente às práticas desportivas, quanto estimulando a mutação de paradigmas das políticas desportivas para que atendam às demandas da sociedade desportivizada. Nesse diapasão, augura-se que o desporto – único cartão postal do país no exterior, parceiro da educação e da saúde -, além de poderoso instrumento de inclusão social e de integração nacional, comece, na práxis, a categorizar-se como direito do cidadão, converter-se em dever do Estado e transfundir-se em responsabilidade social de todos. (2007)

Aprendi demais com o professor Álvaro. Sobre Direito e sobre a vida. Seus ensinamentos foram fundamentais para que eu tivesse a certeza de ser o Direito Desportivo o caminho a ser por mim trilhado. Ele sempre tinha uma palavra de apoio e de incentivo.

Agradeço a todos os leitores que me acompanharam até aqui. Não encontro outra forma de encerrar essa narrativa a não ser com a mesma declaração que emiti a este Lei em Campo, naquele 6 de agosto de 2019: “Obrigado por tudo, professor. Até um dia”. Minha eterna gratidão.

……….

Luiz Felipe Guimarães Santoro é advogado e diretor jurídico da CBF.

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