Pesquisar
Close this search box.

Os Dedos do Meio

Por Tom Assmar

Entre a promulgação da Constituição de 1988 e a implantação do Plano Real em 1994, a ditadura e a inflação foram institucionalmente combatidas em um intervalo de apenas seis anos, mostrando que por maiores e mais difíceis que possam parecer os problemas de uma sociedade, há sempre soluções a serem alcançadas quando há lideranças capazes de canalizar a força e a vontade coletivas em torno de consensos possíveis. Como em qualquer país do mundo, nossos avanços e retrocessos refletem as ações de indivíduos capazes de entender e influenciar a força dos pensamentos e movimentos sociais. Perceber essas ondas não é tarefa fácil. É preciso preparo, experiência, sensibilidade e um pouco de intuição. Da mesma forma, executá-las dentro de um ambiente democrático é ainda mais difícil, pois negociar e convencer outras partes sempre exige tolerância, persistência, empatia e comunicação.

Líderes não aparecem do nada. Não são itens de série que possam ser fabricados ou importados a depender das nossas demandas. São indivíduos cujos comportamentos demonstram com perfeição o espírito do nosso tempo. Na sua forma de pensar e agir, refletem muitos dos nossos valores, crenças e prioridades. São formados nas mesmas cidades, ruas, escolas, bares, empresas, feiras, estádios, igrejas e praias que todos frequentamos. Falam a nossa língua, cantam a nossa música, vestem nossas roupas, vão às nossas festas. Há um pouco de nós em cada um deles.

Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder

Ideologia, eu quero uma pra viver …

Ideologia – Cazuza

Olhe para o futebol brasileiro e veja o tamanho da crise de liderança que vivemos hoje. Clubes incapazes de conversar de forma civilizada sobre seus próprios interesses, sem conseguir chegar a acordos e entendimentos mínimos sobre questões que já foram pacificadas há mais de 20 anos em outros países: mecanismos de governança que os tornem mais saudáveis, negociação centralizada dos direitos de transmissão com distribuição mais equilibrada das receitas, regulação adequada e segurança jurídica que permitam mais investimentos e por fim um calendário mais enxuto e alinhado aos grandes eventos mundiais. Não são questões morais ou éticas mais profundas do nosso pacto social, mas sim aspectos práticos já presentes no dia a dia normal desse negócio e que possuem inúmeros exemplos e referências mundiais mostrando seus riscos e vantagens. A experiência dos outros países pode nos mostrar os caminhos menos dolorosos e arriscados para chegarmos a esse consenso. Mas graças às nossas escolhas, estamos conseguindo a proeza de sermos reprovados em uma prova com consulta.

Nossos líderes não foram trazidos de Marte, mas sim formados no caldo de virtudes e contradições que define a sociedade brasileira. Descasos com a educação, uma imensa desigualdade social e um sistema regulatório com insegurança jurídica e impunidade desestimulam a formação de um pensamento mais coletivo e solidário. Sem educação não há cidadania, sem cidadania não há solidariedade, e sem solidariedade cada um que cuide de si. É verdade que a história de outras nações mostra que clubes raramente se unem de maneira consciente e voluntária. É ingênuo achar que dirigentes espontaneamente deixarão de pensar nos seus interesses e passarão a agir em prol do coletivo. Não é assim que as coisas funcionam. Mais uma vez, cabe às lideranças das entidades máximas de regulação e governança (em especial o Estado e Confederações Esportivas) assumirem essa responsabilidade, usando a força do seu papel institucional para implantar modelos que reduzam as divergências individuais e potencializem os ganhos coletivos. Por aqui, entre o descaso com a vida e a negação da ciência, seguimos caminhando pelo deserto …

Por que nossos clubes ainda não foram capazes de se unir? A regulação não é adequada … ok; há forças poderosas agindo em oposição… ok; a pandemia os fragilizou e as atenções estão voltadas para a gestão do dia a dia … ok. Todos válidos e verdadeiros. Mas podem ser resolvidos no dia em que esse negócio tiver lideranças capazes de agir pensando nos benefícios coletivos e de longo prazo, quebrando o atual modelo de ganhos individuais e imediatos. Essas pessoas existem, estão em algum lugar e precisam encontrar espaço nos nossos clubes, federações estaduais, CBF e no governo federal. Torço para que elas ascendam ao poder em vários lugares ao mesmo tempo, pois não é suficiente que apenas seu clube tenha força, relevância e solidez financeira. Futebol é um esporte coletivo, no qual a qualidade do conjunto influencia diretamente a atratividade do campeonato e a rentabilidade dos seus participantes.

Vou te contar, os olhos já não podem ver, coisas que só o coração pode entender

Fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho …

Wave – João Gilberto

A falta de preparo e decoro das nossas lideranças é um fenômeno dos tempos atuais, triste reflexo dos valores que temos cultivado como nação. Se plantamos desigualdade, desrespeito e individualismo, por que haveríamos de colher empatia, união e solidariedade? Os dedos do meio erguidos pelo Ministro da Saúde contra legítimos manifestantes chocam pela descompostura e comportamento inadequados ao cargo e à ocasião, mas não por serem uma exceção… longe disso… Há vários dedos invisíveis que levantamos e nos são levantados todos os dias na forma como lidamos com o futebol, mas também e principalmente com a educação, com a justiça, com o meio ambiente, com a política, com a economia, com a ciência, com a saúde, com a vacina … enfim, com a vida uns dos outros. Para o bem ou para o mal, o comportamento de uma única pessoa é capaz de transformar a vida de muitas outras. Como indivíduos, somos livres para fazermos nossas próprias escolhas. Mas já que não vivemos sozinhos, é sempre bom lembrar que só seremos um país melhor para investir, trabalhar e viver no dia em que cada um de nós for capaz de abaixar os dedos e abrir os braços.

……….

Tom Assmar tem graduação e mestrado em Administração, e atua há mais de 25 anos com gestão, planejamento e finanças. Acredita que o futuro do nosso futebol passa necessariamente pela formatação de um produto que atenda aos interesses coletivos e pela qualificação da gestão dos clubes. É sócio do Futebol S/A.

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.