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Os embalos de sábado à noite

John Travolta encarna o personagem Tony Manero em “Os Embalos de sábado à noite” (1977) que leva uma vida difícil e sem perspectivas. Jovem do Brooklyn, ele é desprezado por sua família, tem um emprego pouco promissor numa loja de tintas e para piorar, ainda está no meio de uma fossa amorosa.

Foi nos embalos da discoteca nos fins de semana que Manero encontrou algum significado para sua existência. Excelente dançarino de disco music, ele esquece dos seus problemas enquanto dá um verdadeiro show na pista de dança.

O filme é uma pequena mostra do ambiente social dos Estados Unidos dos anos 70, que após anos de escândalos políticos e presenças em guerras, vê o pessimismo dos seus cidadãos se transformar em escapismo com a nova moda de lidar com as dificuldades: embalar o corpo numa danceteria.

No Brasil, os anos 70 já se foram, mas a crise continua e não é preciso ficção para mostrarmos nossos problemas sociais. O eterno país do futuro encontra no presente o torcedor Marivaldo, que, sem dinheiro, costuma caminhar 60 Km de Pombos, no interior pernambucano, até a capital Recife, por nada menos que 12 horas para ver jogos do seu Sport, que habitualmente joga sábados à noite na Ilha do Retiro.

O nome do estádio não poderia ser mais apropriado para Marivaldo. A arena para ele é uma ilha de felicidade em meio ao mar de tristezas que circunda a sua vida: um verdadeiro retiro espiritual onde recarrega suas energias para continuar achando que vale a pena viver.

O seu depoimento não deixa dúvidas:

Faço isso porque me faz bem. Eu me sinto feliz em ir ver o Sport jogar. A minha vida é mais feliz por conta do Sport e não posso me preocupar com o julgamento das pessoas. Cada um tem sua forma de ver o mundo e faz o que quiser. O Sport é o meu mundo, o Sport é minha vida. Eu digo que moro na residência da minha mãe, mas minha casa é a Ilha do Retiro. Quando eu entro nesse estádio, tudo muda. Aqui eu conheci um mundo que eu nunca pensei que existiria

A vida de Tony Manero também mudava na discoteca. Além dele, quase todos nós escolhemos fugir da realidade de alguma forma. Há quem escape para um resort luxuoso, faça jardinagem, isole-se num templo budista, tranque-se numa sala de cinema ou se perca no sexo compulsivo, no álcool ou até mesmo no deserto das drogas.

Longe de ser condenável, a caminhada de Marivaldo não é muito diferente das pessoas que esfolam a sola de seus sapatos no caminho de Santiago de Compostela ou cansam suas pernas numa peregrinação à Meca. É que todos possuem em comum a necessidade de buscarem algo para preencherem suas vidas, com forças que não conseguem encontrar dentro de si mesmos.

Todas as opções lícitas das pessoas precisam ser respeitadas, vez que integram o direito fundamental da liberdade, mais propriamente o subprincípio da liberdade positiva, na qual a pessoa tem a prerrogativa de determinar suas próprias ações e destino, almejando sua autorrealização.

Quanto a Manero e Marivaldo, nota-se que eles buscaram aliviar os seus problemas através de uma das receitas mais aceitas na sociedade: o lazer. E se a sociedade aprova, o Direito reconhece e protege.

Com efeito, a Declaração Universal dos Direitos Humanos no seu art. 24 declara que “Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e a férias periódicas pagas”.

Nossa Constituição vai no mesmo embalo ao erigir o direito ao lazer como um direito fundamental no art. 6º e vai além, atrelando o desporto ao lazer, pois no artigo que regula o desporto, diz que “O poder público incentivará o lazer como forma de promoção social”. (art. 217, 3°).

Assim, é missão constitucional do Estado integrar todos os cidadãos na plenitude da vida social pelo lazer que o desporto proporciona, a fim de elevar as condições de vida daqueles menos afortunados, como Marivaldo, por exemplo.

Todavia, nossos políticos não usaram o dever estatal para a “promoção social”, mas para se promoverem através de medidas eleitoreiras, como a construção de arenas inviáveis e outras obras desnecessárias. Sem falar daqueles que partiram para sua “própria promoção social”, roubando o dinheiro sofrido do nosso povo…

Porém, existe algo mais a ser feito pelo Estado, pois o amor de Marivaldo pelo seu clube revela que as questões que envolvem as instituições desportivas não são e jamais serão um assunto exclusivamente privado.

Não por acaso, a Lei nº 9.615/98 no art. 4, §2º, diz que a organização desportiva do país integra o patrimônio cultural brasileiro, sendo de elevado interesse social, inclusive para os fins de controle pelo Ministério Público.

O destino dessas agremiações não interessa apenas aos que com elas tenham vínculo jurídico, como diretores e associados, mas à sociedade como um todo. Por isso, não podem por má gestão se deteriorarem a ponto de que possam deixar órfãos fãs tão apaixonados como Marivaldo.

É bem de ver que ele certamente não se sente apenas torcedor do Sport, mas peça integrante do seu amado clube. Da mesma forma, os demais torcedores não falam que torcem para este ou para aquele time, mas orgulhosamente dizem que SÃO Vasco, Palmeiras, Grêmio etc.

Talvez por isso o Estatuto do Torcedor, ao tratar do aficionado que vai ao estádio, chama-o de “torcedor partícipe”, numa subliminar alusão ao fato de que o torcedor não é um simples espectador.

É preciso criar condições para que as pessoas como Marivaldo possam ter acesso ao lazer desportivo, já que infelizmente o futebol, por exemplo, está deixando de ser a diversão do povo para se tornar um entretenimento da elite, retornando ao que era no Brasil precisamente 100 anos atrás…

Entretanto, tão importante quanto dar meios de acesso ao lazer é respeitar os meios pelos quais as pessoas se valem para se realizarem. Marivaldo, ao pôr a blusa do Sport e Tony Manero, quando veste sua camisa de poliéster e calça seus sapatos lustrados, partem para os únicos lugares onde se sentem verdadeiramente felizes e ninguém tem o direito de lhes reprovar por isso.

Pois tanto Tony Manero, Marivaldo, eu mesmo e até você, caro leitor, estamos, cada um do seu jeito, fazendo algo comum a todos nós:

Dar algum sentido à nossa existência.

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