É notório o fato de que o ambiente do futebol brasileiro é bastante tumultuado. A famigerada crise da arbitragem brasileira é muito alimentada e turbinada por esse ecossistema marcado pela falta de lealdade em todos os sentidos. O perfil excessivamente intervencionista da arbitragem brasileira representa, a nosso ver, a origem o problema. Não obstante, o problema poderia ser substancialmente suavizado caso as partidas fossem disputadas em um ambiente marcado por maior lealdade e cooperação.
A Premier League costuma, com razão, ser apontada como referência de ambiente esportivo cooperativo. O jogo é mais físico e até mais duro do que aquele que aqui se joga, mas não há cultura do antijogo, do “cai cai”, do tentar a todo tempo enganar a arbitragem, das rodinhas em torno dos árbitros, etc., embora episódios isolados ocorram. A própria torcida costuma vaiar os atletas que simulam faltas, por exemplo. Trata-se de exemplo clássico que como o ambiente molda pessoas e comportamentos. Todo atleta que se transfere ao futebol inglês (ou ao Europeu, de modo geral) sabe que precisará se adaptar aos padrões de comportamento consolidados naquele cenário.
O futebol brasileiro, assim como o sul-americano em geral, ao revés, é marcado pela malandragem e pela esperteza. Poucos colaboram com a arbitragem. O ambiente é profundamente definido pelas pressões constantes e rodinhas em torno dos árbitros e por simulações de faltas e agressões o tempo todo. A título ilustrativo, um simples lateral vira motivo de polêmica. Os goleiros fazem uma defesa ou disputam uma jogada aérea e já se sabe que, em seguida, cairão no chão pedindo atendimento médico. E depois são os mesmos que reclamam do gol sofrido aos 98 minutos e do excesso de acréscimos. Tudo amplificado pelas comissões técnicas e atletas no banco de reservas e pelos dirigentes nos bastidores, que tumultuam ainda mais o ambiente. Aqui também vale a máxima de que o ambiente molda comportamentos. O mesmo atleta “europeu” quando volta repatriado muda instantaneamente de atitude. No ambiente da esperteza, não há estímulo à cooperação, como no famoso dilema do prisioneiro apresentado pela teoria dos jogos: caso todos colaborassem o resultado tenderia a ser favorável a todos, mas um acaba preferindo trapacear sem ter a garantia de que o outro será colaborativo.
Como se não bastasse, até os gandulas vêm ganhando os holofotes ultimamente. Ainda na atual edição do Campeonato Brasileiro, a partida disputada entre Palmeiras e São Paulo, no Allianz Parque, ofereceu um verdadeiro banquete para a Justiça Desportiva. Mesmo com as principais decisões da arbitragem terem sido acertadas (o que já se tornou mero detalhe, pois parece que sempre precisa haver confusão), o ambiente foi marcado por confusões após a partida, tumultos, lançamento de objetos em campo e expulsões. Tudo começou quando atleta Luciano, ao comemorar seu gol pelo São Paulo, chutou a bandeirinha de escanteio que carregava o escudo do Palmeiras. O clima ficou carregado por toda a partida. Ao final, um dos gandulas do Palmeiras virou o epicentro da confusão após se dirigir aos atletas do São Paulo para tirar satisfações e acender o estopim que faltava para as confusões que se arrastaram até o vestiários. Fora este episódio, citado apenas para efeito ilustrativo, não raro acontecem situações nas quais as bolas literalmente somem ao final das partidas e não são devidamente repostas, prejudicando o tempo de jogo útil das partidas.
As questões que então surgem são: os gandulas são jurisdicionados da Justiça Desportiva? Podem os mesmos cometer infrações disciplinares assim como atletas, dirigentes, árbitros e membros de comissão técnica e sofrer as respectivas punições, após denúncia oferecida pela Procuradoria?
A resposta é positiva para ambas as questões. Em primeiro lugar, o art. 1º do CBJD estabelece que estão submetidos a ele as pessoas naturais que exerçam quaisquer empregos, cargos ou funções relacionadas a alguma modalidade esportiva. Além do mais, como veremos adiante, a atividade dos gandulas é prevista nos regulamentos de competições e, como é sabido, cabe à Justiça Desportiva zelar pelo seu regular cumprimento. Tudo dependerá de qual conduta foi praticada pelo gandula para guiar eventual denúncia da Procuradoria, mas normalmente o enquadramento costuma ocorrer via art. 258 do CBJD, que trata da prática de conduta contrária à ética ou à disciplina desportiva, com suspensão de 15 a 180 dias.
A CBF estipula, no art 7º, inciso VIII, do Regulamento Geral de Competições (RGC 2024), que cabe ao clube mandante administrar e treinar um quadro de gandulas de, no mínimo, 6 integrantes, maiores de 18 anos, sendo que, dos gandulas será exigido “trabalho de imediata reposição de bola e absoluta neutralidade de comportamento em
relação às equipes participantes”. Trocando em miúdos, certamente por considerar a atividade dos gandulas como uma questão menor ou, um mero detalhe, a CBF terceiriza sua administração aos clubes. Aqui reside a raiz do problema.
Como os clubes mandantes alocam torcedores no quadro de gandulas, certo comportamento mais apaixonado é até natural. O que é inadmissível é que os clubes mandantes orientem os gandulas a guiar suas condutas conforme o resultado momentâneo das partidas. É exatamente essa a causa do sumiço das bolas ao final das partidas.
A CBF como organizadora das principais competições nacionais, precisa assumir as rédeas da questão dos gandulas, especialmente porque os clubes insistem em se comportar como se ainda estivessem na quinta série, o que, como se nota, é replicado nos diferentes aspectos do jogo. Um passo simples e necessário, valendo-se da bem-sucedida experiência das principais ligas europeias, seria a instalação de pequenos “pedestais” em torno do campo. A função dos gandulas passaria a ser a de repor as bolas para os pedestais e não mais diretamente para os atletas, o que evita eventuais conflitos, discussões, empurrões, etc. Os jogadores é que deveriam se dirigir aos pedestais, colocados estrategicamente a poucos metros da linha lateral do campo. No mais, é claro, a administração do quadro de gandulas precisa sair da mão dos clubes. Não adianta pedir e exigir neutralidade de um sujeito que é natural e compreensivelmente parcial. A atenção aos detalhes pode fazer toda a diferença.
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