Na coluna da última semana trabalhamos o caso Bosman e repercutimos como o mesmo, inicialmente, representou o fim do instituto do passe e alterou o modus operandi das transferências no futebol a nível mundial. Com a sentença Bosman, em 1995, a UEFA e a FIFA precisaram correr para alterar e adequar suas regulamentações aos direitos fundamentais dos cidadãos comunitários, conforme repisado pelo Tribunal da União Europeia, pois a cobrança de qualquer valor a título de transferência após a expiração dos contratos tornava-se ilegal a partir de então. Após o término da avença, o atleta tornava-se um agente livre (free agent) e nos últimos 6 meses de vigência já teria a possibilidade de assinar um pré-contrato com outro clube. Indiretamente, restava pavimentado o caminho para a supremacia dos clubes europeus a nível mundial, pois a contratação de atletas comunitários não mais contaria para efeito da limitada quota de atletas estrangeiros de cada equipe.
Trocando em miúdos, os atletas deixam de ser negociados como se fossem mercadorias ao final da vigência de seus contratos, pois o passe limitava demasiadamente sua liberdade laboral, quase os escravizava e os mantinha vinculados quase que indefinidamente ao último clube empregador. Por outro lado, o instituto do passe foi criado como forma de remunerar os clubes formadores. Como veremos na próxima semana, a FIFA adaptou suas normas esportivas para substituir o velho passe por outros mecanismos, assegurando os direitos fundamentais dos jogadores, mas, ao mesmo tempo, prevendo mecanismos de estabilidade contratual durante a vigência dos contratos e garantindo compensação aos formadores. Isto quer dizer que os atletas permanecem como ativos (não mais mercadorias) dos clubes somente enquanto persistir a vinculação contratual.
Com a lei Bosman, seria natural que a dinâmica das negociações fosse definitivamente transfigurada. Os clubes agora precisam gerir seus ativos de forma diversa daquela que faziam anteriormente ao julgado. Com o instituto do passe, as agremiações não precisavam ter pressa no momento de renovar contratos, tendo em vista que os atletas permaneceriam vinculados mesmo após o seu término. O poder de barganha estava quase todo nas mãos dos clubes, que poderiam até pressionar por renovações em condições desfavoráveis aos atletas via elevação do valor do passe, exatamente como ocorrido no caso Bosman.
Agora, os atletas e seus intermediários assumem maior protagonismo. Eventual indenização só será devida em caso de quebra de contrato. Ao final do contrato, o atleta está livre. Na prática, os clubes tendem a oferecer contratos mais longos aos principais jogadores de seus plantéis, como forma de proteção. E nessa gestão de ativos, passam a ter maior urgência na renovação das avenças. É comum que os clubes, então, procurem os atletas ainda por volta da metade do tempo de contrato, oferecendo condições vantajosas (aumentos salariais, novos add ons, luvas, etc.) para fins de ampliação do vínculo e também como instrumento que viabilizaria o aumento das multas rescisórias. Os clubes simplesmente não podem deixar seus principais atletas chegarem ao último ano de seus contratos, posto que nos últimos 6 meses podem assinar um pré-contrato com outra equipe sem necessidade de pagamento de multa, o que lhes daria imenso poder de barganha.
A FIFA, no intuito de assegurar estabilidade contratual ao ecossistema do futebol após o caso Bosman, passa a prever que, no caso de quebra contratual sem justa causa (art. 17 do RSTP), o clube que deixar de honrar com o pagamento da indenização fica sujeito a inúmeras sanções típicas do sistema associativo, especialmente o transfer ban. Caso o atleta seja o responsável pelo rompimento, a multa é solidariamente devida por ele e pelo eventual novo clube, podendo o jogador ser suspenso por tempo determinado (em regra 4 meses) em caso de não cumprimento, sendo que a nova equipe também fica sujeita ao transfer ban, posto que há uma presunção relativa de que o clube aliciou o jogador e estimulou a rescisão sem justa causa (clube indutor).
Naturalmente, já era esperado que ocorresse um verdadeiro boom ocorrido no montante das comissões recebidas pelos intermediários, então oferecidas também como incentivo às renovações de seus agenciados. Na Europa, por exemplo, é curioso como os balanços financeiros divulgados periodicamente pelos clubes contemplam itens específicos e substanciosos para os valores gastos com comissões de agentes e que já representam uma considerável fatia de suas despesas anuais. Tal quadro, inclusive, levou a FIFA a editar o novo regulamento da atividade dos agentes com novos requisitos para registro (inclusive uma prova) e limitações às comissões, o qual entrou em vigor em 2023, mas que logo em seguida foi suspenso pela própria entidade após inúmeras derrotas judiciais por suposto ferimento às regras do direito concorrencial comunitário europeu.
Eis que, na última semana eclodiu o caso Lassana Diarra, já repercutido amplamente no Lei em Campo ao longo dos últimos dias por diversos especialistas, o qual, assim como o caso Bosman, pode ter efeitos importantes sobre a dinâmica das transferências e mais uma vez revolucionar o futebol, embora ainda seja prematuro traçar um cenário mais definitivo.
O atleta Diarra, hoje já aposentado do futebol, atuou pela seleção da França e defendeu importantes clubes europeus ao longo de sua carreira, inclusive o Real Madrid. Em 2014, o jogador protagonizou uma saída conturbada do Lokomotiv Moscou, quando, ainda com 1 ano restante em seu contrato, teve o mesmo rescindido, embora o atleta não reconheça que a rescisão tenha partido dele. A Câmara de Resolução de Litígios (DRC) da FIFA condenou o atleta a indenizar o clube em 10,5 milhões de euros, o que teria feito com que o jogador ficasse afastado dos gramados por vários meses diante do natural afastamento das equipes interessadas em seus serviços por conta do imbróglio e do risco de serem acusadas de aliciamento e de terem induzido o rompimento do contrato. O atleta alegava ter sido vítima de um perverso sistema de transferências que acabou prejudicando sua carreira.
O caso também chegou ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que este mês entendeu que as regras do art. 17 do RSTP são ilegais e violam as normas do direito comunitário europeu e consignou que espera que a FIFA reveja tais orientações no futuro. As referidas normas imporiam riscos financeiros e esportivos altíssimos aos atletas sob contrato e aos clubes interessados, solapando a velha livre circulação de trabalhadores no âmbito da União Europeia. Na prática, o julgamento definiu que a normativa do RSTP não poderia impedir o atleta de trabalhar em outro clube como resultado de uma condenação financeira e da imposição de uma sanção disciplinar nesse sentido. Ou seja, nem o atleta poderia ser suspenso nem o clube supostamente indutor sofrer o transfer ban.
Ainda é cedo para dizer que o caso funcionará como um novo leading case que motivará a FIFA a alterar, mais uma vez, seus regulamentos, até porque o TJUE só possui jurisdição sobre os países membros da União Europeia. Mas no caso Bosman também! Ao menos, tudo indica que o protagonismo assumido por atletas e intermediários desde o fim do passe tende a aumentar ainda mais. A eventual ausência de sanções poderia estimular novas quebras contratuais e o início de novos vínculos. Por outro lado, os clubes tendem a não mais apresentar a mesma volúpia no oferecimento de contratos longos aos atletas sem a proteção que o sistema de estabilidade lhes assegura, o que também pode gerar mais instabilidade e insegurança no planejamento de carreira dos jogadores. Tudo dependerá se a FIFA efetivamente recuará e, em caso positivo, de qual novo regramento será colocado em prática em substituição ao art. 17 do RSTP atual. Seguramente, a FIFA tende a elaborar um novo e reestruturado modelo de estabilidade contratual, evitando um vácuo normativo que traria mais insegurança ao sistema associativo que governa. A economia do futebol não pode prescindir disso.
A aguardar as cenas do próximo capítulo.
Crédito imagem: Getty Images
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