“O experimento de Milgram” (1962) foi uma experiência realizada por Stanley Milgram, um professor da Universidade de Yale, que queria testar até que ponto as pessoas tendem a obedecer às autoridades, mesmo que as suas ordens contradigam o bom senso doindivíduo.
O teste consistia em recrutar homens que, sob as ordens de um pseudo cientista, aplicariam choques elétricos em alunos, quando estes não respondessemcorretamente às questões que fossem formuladas. Tanto o “cientista” quanto o “aluno” eram atores e os choques não eram de verdade.
Para o operador da máquina, foi dito que o teste consistiria em saber como funciona o aprendizado para aqueles que sofrem punições por não responderem às perguntas de forma acertada. Entretanto, o que se queria mesmo era ver como o operador se comporta quando é orientado a impingir dores a outros seres humanos.
Detalhe: os choques aumentariam de intensidade acada novo erro do aluno, o que supostamente ia lhe trazendo um sofrimento cada vez mais intenso no curso do experimento. E os resultados foram surpreendentes. A maioria aceitou aplicar choques até a última escala a outros indivíduos. O motivo? A obediência.
De fato, o experimento demonstrou que o grupo majoritário, mesmo constrangido, obedeceu fielmente às determinações do “cientista” que conduzia o experimento.
É curioso como a alma humana, com a velocidade de uma corrente elétrica, costuma obedecer às orientaçõesque partem de seus superiores, sem se questionar sobre a moralidade e correção dessas determinações.
O VAR é um bom e moderno exemplo de como as conclusões dos testes de Milgram permanecem atuais.Inumeros são os casos em que se constata um erro do VAR na avaliação de um lance e mesmo revendo a jogada mal interpretada pelo árbitro de vídeo, o árbitro de campo costuma ratificá-la.
Milgram certamente diria que isto se deve ao temor reverencial que o árbitro possui pelo VAR. Com efeito, mesmo tendo a palavra final na interpretação dos lances, é visível que o árbitro de campo tem por hábito obedecer o VAR, mesmo quando este tenha avaliado equivocadamente uma jogada.
A obediência cega à autoridade é uma questão que atormenta a humanidade ao longo da história.
Sófocles, por exemplo, discutiu esse tema há mais de dois mil anos em sua peça “Antigona”. Mas a humanidade viu-se confrontada mesmo com o problema no holocausto, em especial por ocasião do julgamento de Adolf Eichmann, que administrou o programa nazista de deportação de judeus para os campos de concentração.
Como destacou Hannah Arendt, no seu livro“Eichmann in Jerusalém” o julgamento mostrou queEichmann “não era um monstro sádico como se pretendia, mas um burocrata que simplesmente se sentava à sua mesa de trabalho e cumpria sua tarefa de acordo com as ordens que eram dadas por seus superiores.”
Se uma pessoa é capaz de fazer coisas desse tiponum campo de concentração com seres semelhantes, apenas por que alguém assim determinou, por muito menos razão ele pode “operar os clubes sem anestesia” num simples campo de jogo…
Como salienta Milgram: “A essência da obediência é que uma pessoa passa a se ver como o instrumento que executa os desejos de outra e que, portanto, deixa de se considerar responsável pelas suas ações. Uma vez que ocorre essa mudança crítica de ponto de vista, seguem-se todos os fatores essenciais da obediência. A conseqüência mais distante é que a pessoa se sente responsável perante a autoridade que a dirige, mas não sente nenhumaresponsabilidade pelo conteúdo das ações prescritas pela autoridade.”
A questão da obediência possui, portanto, outraimportante faceta: a comodidade para o executor da ordem. Quanto ao tema em análise, basta o VAR dizer que um lance aconteceu de uma determinada forma que o árbitro de campo invariavelmente acata, sem se questionar se o que foi dito está correto ou não. Assim, lavando as mãos tal como Pilatos no credo, os árbitros de campo simplesmente seguem o que o VAR diz e dessa forma buscam se eximir da responsabilidade de seus atos.
Eis, portanto, outro grande problema decorrente da implantação do VAR: a promoção de uma grande divisão de responsabilidades, onde ao fim e ao cabo ninguém termina sendo responsável por coisa alguma.
Além de jogo de futebol, os torcedores andam assistindo ultimamente a um autêntico jogo de empurra, onde o que vai sendo empurrada mesmo é a própria impunidade, que é cada vez mais jogada para debaixo do tapete.
Aliás, o VAR nada mais faz do que refletir o funcionamento da sociedade hoje em dia, onde a divisão de trabalho tende a pulverizar a responsabilidade individual. Este ponto também não passou despercebido por Milgram, em pensamento que se aplica ao VAR como luva bem ajustada:
“Logo que houve a divisão do trabalho, as coisas mudaram.[…] Há, assim, uma fragmentação da ação humana total; ninguém é confrontado com asconseqüências da sua decisão de executar o ato mau. A pessoa que assume a responsabilidade desapareceu.”
É preciso dar um choque de mudança na disciplina da matéria. Do jeito em que está, os árbitros de campo continuarão observando um verdadeiro mandamento que resolveram criar para si próprios:
“Obedecer o VAR acima de todas as coisas”.
Até mesmo da sua própria consciência.
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