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Pandemia e a Justiça Desportiva

Vivemos tempos difíceis, isso é inegável. Mais de 100 anos depois da pandemia de gripe espanhola o mundo volta a sofrer por causa de um vírus. O mundo está paralisado, recluso, esperando que a ciência traga soluções que não puderam ser encontradas no século passado e impeça milhões de mortes. Enquanto isso, as estruturas começam a ser repensadas. Algumas por oportunidade, outras por necessidade.

E este é um momento em que precisaremos repensar também as estruturas da Justiça Desportiva. Se ela já não estava funcionando perfeitamente antes da crise, é muito provável que a coisa fique ainda pior depois dela. Por uma série de motivos, mas principalmente por causa de sua estrutura.

Quando falamos de Justiça Desportiva, precisamos levantar alguns pontos. O primeiro deles é a dedicação dos procuradores e auditores.

Ainda que a maioria das pessoas que participam da Justiça Desportiva de forma voluntária atuem por prazer e idealismo, exercendo suas funções da melhor maneira possível, é inegável que o fato de ser uma atividade absolutamente voluntária faz com que ela se posicione fora da lista de prioridades de todos aqueles que estão ali. E não é por maldade ou falta de interesse, mas simplesmente porque as pessoas naturalmente colocam como principal prioridade profissional sua fonte de renda, aquilo que lhes garante o sustento.

Com isso, o que observamos é que nem sempre as manifestações da Justiça Desportiva são tão bem fundamentadas quanto a capacidade técnica das pessoas que ali estão nos faria esperar. Há, certamente, alguns votos históricos, memoráveis, na Justiça Desportiva. Mas entre tantos processos, quantos são aqueles que podem ser utilizados como exemplos? Mais que isso, como se pode fazer uma pesquisa de jurisprudência das decisões da Justiça Desportiva. Pouquíssimos são os tribunais que possuem essa estrutura e, entre aqueles que possuem, poucas decisões são bem fundamentadas a ponto de poderem ser usadas em um momento futuro.

E com a crise que se constrói dia após dia, a tendência é que as pessoas tenham que dedicar cada vez mais tempo às suas atividades profissionais, por uma questão de sobrevivência. E isso pode afetar ainda mais o trabalho dos principais nomes da Justiça Desportiva, que são fundamentais para a condução dos trabalhos e também para que os mais jovens, que passaram a exercer tais funções há menos tempo possam aprender com eles, já que a oralidade prevalece não só na Justiça Desportiva, mas no Direito Desportivo como um todo.

Mas não é esse o único impacto que a crise econômica deve ter sobre a Justiça Desportiva. Diversos tribunais têm, historicamente, dificuldades para se financiar e exercer suas funções de maneira adequada. Aí você pode estar se perguntando: “mas se o tribunal é constituído por voluntários, o que a crise econômica tem a ver com isso?”; e eu te respondo: tudo.

Por mais que auditores e procuradores sejam voluntários, para que um tribunal funcione é necessária toda uma estrutura, que envolve o espaço físico utilizado para a realização das sessões, a tecnologia necessária para viabilizar todos os atos processuais, ao menos um secretário, a logística de todos os membros do tribunal, entre muitas outras coisas. Uma reunião do Pleno de um tribunal pode facilmente ter um custo superior a R$20.000,00.

Entidades de administração do esporte com orçamentos enxutos muitas vezes não possuem essa quantidade de recursos disponível, o que faz com que alguns tribunais não possam se reunir com a frequência necessária para dar vazão aos casos. Há relatos de processos aguardando julgamento há mais de 1 ano por falta de verba para realização de sessões. Isso vai de encontro a uma série de questões fundamentais para o direito disciplinar desportivo, como a celeridade e a independência da Justiça Desportiva.

Mas também não podemos esperar que uma entidade de administração que muitas vezes não tem orçamento suficiente para sequer fomentar de maneira adequada a prática de sua modalidade direcione recursos para a Justiça Desportiva, uma vez que é a prática esportiva a própria razão de ser não apenas da Justiça, mas de todo o Direito Desportivo.

Se a situação financeira já não era confortável antes da crise, o que esperar para o futuro?

Sem dúvidas muita coisa precisará mudar na estrutura da Justiça Desportiva. Precisaremos nos abrir para novas possibilidades, pensar fora da caixa e torcer para que as alterações legislativas tenham a agilidade que precisamos.

Mas de onde podemos tirar ideias para reduzir os custos e melhorar a Justiça Desportiva?

Boas ideias não faltam, e algumas delas já são utilizadas de maneira difusa no Brasil. Um dos exemplos que merece ser citado é o tribunal do basquete que há anos se utiliza da tecnologia como forma de reduzir distâncias (e custos) em seus julgamentos. Ainda que de forma limitada, esse foi o primeiro tribunal que se aproveitou dos aplicativos de videoconferência durante os processos. Eram utilizadas videochamadas para ouvir depoimentos e testemunhos de pessoas que teriam algum tipo de dificuldade de comparecer presencialmente aos julgamentos.

Com o passar dos anos, outros tribunais passaram a fazer uso das videochamadas não apenas para ouvir esses depoimentos, mas também para que auditores e procuradores pudessem participar das sessões mesmo não estando presencialmente nos locais. E com os processos sendo digitais, há uma série de outras possibilidades que emergem, inclusive acabando com a necessidade de sessões presenciais.

No entanto, como tudo aquilo que é novo, ainda há muitas questões que precisam ser solucionadas sobre o uso da tecnologia, especialmente no tocante à segurança e à transparência. Uma análise das opções de uso é importante para que se possa efetivamente regulamentar a forma e os limites do uso da tecnologia nos julgamentos.

Mas aí temos mais uma vez a questão dos custos. Ainda que a estrutura necessária seja menor, certamente haverá necessidade de investimentos para adequação tecnológica ao novo cenário que, a depender da forma como a regulamentação ocorrer, poderá tornar inviável o uso por parte de alguns tribunais.

Há, no entanto, outras possibilidades que precisam ser avaliadas, ainda que pareçam mudanças mais radicais. A primeira delas é replicar uma experiência que se mostrou, ao menos em partes, um sucesso. Ainda que tenha alguns problemas que já foram identificados, e com isso podem ser corrigidos, a Corte Única criada para avaliar os processos de doping no Brasil tem mostrado ótimo resultado.

Com profissionais de primeira linha tanto na Procuradoria quando nas posições de auditores, a Corte Única mostra um caminho que pode ser proveitoso para a grande maioria das entidades de administração do esporte no país. Se os custos para a manutenção de um tribunal por entidade são elevados, ter uma estrutura única, julgando casos de diversas entidades deve ser uma possibilidade analisada.

Com a diluição dos custos e o maior número de casos, isso permitiria que os processos fossem julgados com maior frequência, dando mais celeridade à estrutura. Mais que isso, ao reduzir a necessidade de pessoas nos postos da Justiça Desportiva, será possível ter uma estrutura mais qualificada de maneira geral. Há, inclusive, a possibilidade de se passar a remunerar os membros da Justiça Desportiva, de modo a que passem a ter dedicação exclusiva a essa atividade, resolvendo em partes o primeiro dos problemas que citamos aqui.

Isso, obviamente, dependeria de algumas alterações legislativas. Essas alterações, no entanto, não seriam um problema. Ainda que um conjunto de pessoas alegue que a imposição de uma estrutura de Justiça Desportiva vai de encontro à autonomia desportiva, não é isso que se observa no texto constitucional.

O artigo 217 da Constituição Federal apresenta que as entidades desportivas possuem autonomia quanto a sua organização e funcionamento. A Justiça Desportiva, no entanto, não faz parte da organização de uma entidade desportiva, tampouco influenciam em seu funcionamento. Desta forma, não há que se falar em inconstitucionalidade. O próprio artigo 217 dá espaço para que a Justiça Desportiva seja regulamentada em lei, não impondo qualquer limite constitucional a essa regulamentação.

Essa regulamentação poderia, inclusive, seguir um padrão que é bastante utilizado nas ligas norte-americanas. Lá as infrações não são necessariamente julgadas por um colegiado, seguindo o devido processo legal e garantindo o contraditório em todas as etapas. Há ligas em que a infração é analisada por um único indivíduo, que propõe uma pena. Apenas após essa proposta o infrator pode se manifestar, recorrendo e apresentando suas razões e provas, caso seja necessário.

Essa possibilidade fica ainda mais evidente quando pensamos nas normas brasileiras e no funcionamento da Justiça Desportiva por aqui. Mais de uma vez participei de julgamentos com pautas que traziam apenas denúncias por infração de atletas não profissionais ao artigo 250 do CBJD que foram expulsos da partida. Ora, vamos pensar um pouco. O artigo 250 do CBJD se refere à prática de jogada desleal ou hostil e prevê pena de 1 a 3 partidas, que pode ser substituída por advertência. Se o atleta for não profissional, o artigo 182 prevê a redução da pena pela metade, arredondando para baixo. Nesse caso, a pena do artigo 250 poderia variar de advertência a 1 partida. Como o atleta havia sido expulso, já teria que cumprir a suspensão automática, fazendo com que a pena não tivesse qualquer efeito prático. Ou seja, movimentou-se toda uma estrutura jusdesportiva sem qualquer motivo. Caso o modelo proposto fosse adotado, a propositura da pena de 1 partida provavelmente seria aceita pelo infrator, não gerando ônus para nenhuma das partes.

Obviamente eu escolhi um exemplo extremo para ilustrar o caso, e há penas com variação muito maior. Mas isso não faz com que o modelo seja adequado. Na verdade, a própria norma brasileira já abre essa possibilidade, que ainda é pouco utilizada. Temos o instrumento da transação disciplinar, que pode ser proposta pela Procuradoria.

No entanto, a previsão da possibilidade de transação disciplinar não altera a estrutura inchada da Justiça Desportiva. Caso um modelo de revisão mediante recurso fosse adotado no Brasil, poderíamos ter um auditor fazendo a análise inicial do caso e propondo a pena e, em caso de recurso, a análise poderia ser feita por um colegiado composto por 3 pessoas, sendo um indicado pela OAB, um indicado pela entidade de administração da modalidade e um indicado pela categoria do denunciado (atleta, árbitro ou membros de comissão técnica), apenas como exemplo. Uma estrutura que hoje exige no mínimo 15 voluntários poderia ser reduzida para até 4.

Isso, em contraposição à ideia anterior, deixaria a estrutura da Justiça Desportiva ainda mais dependente (e sujeita a influência) das entidades de administração. Como toda proposta, há prós e contras. Além disso, mais uma vez, seria necessária uma grande mudança legislativa para permitir a adoção desse modelo, mas que é absolutamente possível considerando a normas e princípios basilares da Justiça Desportiva.

Como essas, há uma série de outras ideias que não só podem como devem ser discutidas para melhorar a Justiça Desportiva e reduzir os custos para as entidades de administração do desporto. E essa discussão é urgente, considerando que a crise econômica pode provocar a completa paralisia da Justiça Desportiva em algumas entidades, que talvez vocês não vejam, já que a maioria não possui grande apelo midiático, mas que são extremamente importantes para diversas modalidades.

E você, tem alguma ideia de como melhorar a estrutura da Justiça Desportiva? Nos diga aí nos comentários.

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