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Para onde caminha o sócio-torcedor

Por Marcelo Azevedo

Confesso que quando ouvi pela primeira vez o termo sócio-torcedor, me causou uma certa estranheza. Como assim sócio-torcedor? Como vão empacotar a minha paixão, herdada por inúmeros motivos emocionais, num contrato formal de consumo? Desde quando passou a ser importante categorizar um amor incondicional, dando até nome para isso?

Eu mantenho, ao menos desde que me entendo por torcedor, uma relação identitária e de pertencimento a este ente denominado clube de futebol, que segundo Hilário Franco Júnior em A Dança dos Deus (2007), “é algo etéreo, indefinível, que não é sede social, não é o conjunto dos dirigentes, não é o grupo dos jogadores, não é a multidão imprecisa de torcedores, mas é ao mesmo tempo tudo isso e muito mais.”

Se torcer para um clube é parte de quem você é, como tornar isso um documento contratual entre partes? Então quer dizer que se você não paga o programa de sócio-torcedor do seu clube, sua paixão é rebaixada e você se torna um ser inferior, desprovido da fibra moral indispensável a qualquer indivíduo apaixonado pelo seu clube? Não sei, aquilo me soou mal, muito mal.

Mas, naquele longínquo ano de 2003, quando Bebeto de Freitas anunciou o Programa Botafogo no Coração, fazendo um dramático apelo à torcida, eu pensei comigo: Pronto, estou diante da maneira possível de ajudar o meu clube, tenho como pagar, vou fazer.

Passados quase 20 anos, a existência de iniciativas assim nos clubes já há algum tempo deixou de ser um pedido desesperado de ajuda para tornar-se uma obrigação orçamentária.

Ainda que seja uma das menores dentro do elenco de receitas possíveis de serem realizadas num clube, os programas de sócio-torcedor são um mecanismo importante para aproximar seus torcedores, trazendo consigo dois atributos que brilham tal qual ouro de mina: (i) a recorrência da receita, assegurando alguma previsibilidade aos combalidos caixas dos times brasileiros e (ii) o acesso às informações de comportamento e consumo do torcedor, a grande matéria prima para o desenvolvimento de novas receitas pelos clubes de futebol.

Programas de sócio-torcedor, receitas com a bilheteria e as receitas do chamado Dia do Jogo (Match Day), são possivelmente os únicos produtos  da relação direta entre o clube e seu torcedor, o que no jargão do marketing costuma se chamar de uma relação de consumo B2C. Só que neste caso, recheada de uma devoção capaz de estimular um sistema de recompensas mentais e emocionais incomparáveis, talvez alcançado apenas pelas marcas que atingem o Olimpo das Love Brands.

Mas o caminho até lá é longo e a estrada já está bastante danificada. Percebam que a existência destes programas deveria contribuir para a fidelização da massa de seus torcedores, mas são tantas mudanças de nome e formatos, às vezes até dentro de um mesmo ano, que até para quem tem a paixão como combustível de consumo, fica difícil seguir associado sem se questionar. Ainda assim, quem dera fosse este o único problema a lidar, pois talvez estivéssemos mais próximos da solução.

Bom, se você chegou até aqui, já deu para perceber que estamos diante de uma provocação que nos levará a mais dúvidas que certezas, não é? Com a chegada da pandemia do Covid, o que já era um problema que exigia mais que respostas simples, escancarou de vez os dois maiores desafios enfrentados desde sempre por estes programas: (i) A maior entrega é um evento presencial e (ii) a cruel dependência do desempenho esportivo para a manutenção do número de associados.

Em resumo, os torcedores se associam porque buscam acesso a ingressos mais baratos e/ou privilégios na hora de garantir sua entrada nos jogos. Mas se não existe público nos estádios e a relação construída é fruto de um pacto formal e contratual, que entrega farão os clubes a fim de preservar esta fonte de receita?

Além disso, não é possível descontextualizar o ineditismo que o fenômeno da pandemia causou em todos, onde o afastamento do estádio, de longe a sua face menos dolorosa, obrigou que os setores de marketing dos clubes fossem em busca das novas formas de contato entre as instituições e seus torcedores.

Os números, com pequenas variações, demonstram a importância dos programas de sócio-torcedor e das bilheterias nas finanças dos clubes, onde correspondem por até 16% de toda a receita que circula no futebol. Só que é aí que é preciso entender que a mesma crise que afetou os clubes, atingiu duramente seus torcedores.

Lá no começo eu disse que torcer para um clube é parte de quem você é, de onde conclui-se que se manter ao lado dele neste momento é uma afirmação desta identidade. Se esta premissa é verdadeira, então cabe aos clubes aprender a trabalhar isso. E para ontem. E sabe por que? Porque se você analisar os times fundadores do Clube dos 13, todos se colocam como times com torcedores espalhados por todo o país, uns mais regionais, outros mais nacionais, mas todos se orgulham de ter torcida em diversas partes do Brasil. E sabe o que eles fazem com isso? Nada, absolutamente nada.

Isso, em parte, explica porque todos eles perderam quantidades expressivas de sócios-torcedores, uma vez que nenhum deles sabe tratar o torcedor que reside para além da sua fronteira estadual, digo mais, para além dos limites de sua região metropolitana.

Pois bem amigos, a pandemia escancarou uma realidade: os clubes, apenas focados na facilidade de compra de ingressos como oferta diferencial para seus torcedores, nunca deram muita bola para o torcedor que vivia longe da cidade sede do clube. Só que a pandemia empurrou todos para dentro de casa (ou ao menos deveria ter sido assim), transformando o sócio torcedor tradicional, aquele que paga o programa para ter ingressos mais acessíveis e em conta, no sócio torcedor a distância, aquele que derruba as fronteiras geográficas para demonstrar o seu amor. Sem ter mais o acesso ao estádio para oferecer, o que os clubes tinham para entregar como produto para que o seu torcedor seguisse gerando esta receita tão valiosa para seus cofres? Nada, praticamente nada. Então a conta chegou. E foi depois de tanto desprezar o conhecimento dos hábitos de seus consumidores, ops, torcedores, bem representada pela invisibilidade  do torcedor sem fronteiras, que restou claro que a indústria não se preparou para trabalhar sem sua maior entrega: o acesso ao jogo

E qual o caminho para corrigir esses erros ? Implementar uma cultura de uso de dados para entender o comportamento deste indivíduo, especialmente no que se refere ao consumo de conteúdo do clube. E aí, quem até outro dia era ator coadjuvante, assume o papel principal do enredo, vira o novo protagonista nesta história. E tem bastante coisa para falarmos sobre isso, especialmente numa época em que a compra de conteúdo via streaming não é mais uma decisão individual, mas uma decisão familiar.

Uma alternativa seria a diversidade de oferta de conteúdo numa plataforma que permita a toda a família consumir. Se a experiência de consumo do conteúdo será por demanda (on demand), a contratação, cada vez mais, será familiar. Como consequência disso, os clubes podem passar a ser percebidos, dentro de relação favorável de lealdade e fidelidade, como uma plataforma de mídia, que não oferece apenas o dia do jogo como seu único e valioso produto. A boa notícia é que tem gente já começando a fazer o dever de casa: a FlaTV será uma plataforma de OTT, o verdão lançando a TV Palmeiras Plus , o Grêmio com a Grêmio Play, aposta iniciada, importante destacar, com o tricolor da boa terra, que saiu na frente com o Sócio Digital do Bahia.

Pegando emprestada uma analogia muito usada por Renato Gueudeville  ,meu companheiro de Futebol SA, o safety car está na pista, quem ficar muito para trás, quando a largada for autorizada, não tem jeito, vai largar do fim.

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Marcelo Azevedo é formado em Administração de Empresas com MBA em Gestão de Negócios. Publicitário por adoção, atua há mais de 30 anos liderando áreas de gestão e finanças. É convicto da força que o ecossistema do futebol pode produzir ao seu entorno.  Torcedor raiz, é um amante do jogo bem jogado, da boa disputa, mas gostar, gostar mesmo, ele gosta é do Botafogo, até mais do que do futebol.

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