Em uma publicação de 1957, a revista France Football soltava uma nota impiedosa: “Sendo um artista, e não um atleta, o jogador brasileiro apaixona-se de tal forma por sua arte que se deixa dominar por ela. Tem nervos sensíveis, é um temperamental, um imaturo, um soldado psicologicamente despreparado para a guerra”.
Não era a primeira vez que alguém comparava as quatro linhas às trincheiras. Também não era novidade que os jogadores brasileiros fossem apontados como vulneráveis, inseguros e insubordinados. Não todos. Os negros.
Desde a final da Copa do Mundo de 50, a tragédia com o Uruguai em pleno Maracanã recairia sobre os ombros de três deles. Bigode, que fora atropelado pelo uruguaio Obdúlio Varela; Juvenal, por não cobrir o Bigode; e Barbosa, que, condenado à pena perpétua pelo Maracanazo, anos depois, ainda se lembraria do silencio ensurdecedor daquelas 200 mil pessoas, ecoando entre as traves quando Gigghia marcava aos 34 do segundo tempo. O Brasil chorava, e a culpa tinha cor.
Dizem que, muito tempo depois, o Barbosa chegou queimar uma das traves daquele Maracanã. Como se o fogo pudesse fazer justiça, reduzindo tudo a cinzas. Esquecer dos que o acusavam. Sobre isso, gostava de dizer Mário Filho que, quando o faziam, acusavam a si mesmos. Isso porque, algumas décadas antes, intelectuais atribuíam à miscigenação um novo valor.
Como se nos falhasse lembrar da própria história, ou como se quiséssemos esconde-la, diríamos que, naquele momento, se acabava o preconceito. Com a ponta de uma caneta, do dia pra noite, e como se isso fosse possível, o que era vergonha, haveria de ser orgulho. Onde havia democracia racial, diríamos, não havia mais negros, brancos ou índios. Éramos todos o povo brasileiro. Enormes na nossa singularidade. A menos que nos acusássemos.
Assim, aqui e ali, a participação dos negros no futebol (e na vida) era, aos poucos, autorizada. E como quem concede a benesse pode vez ou outra mudar de ideia, seria também contestada. Bastava um deslize. Culpa do negro. A miscigenação celebrada, até a página dois. Enquanto o negro ajudasse a ganhar.
Contam que em 54, na eliminação da Copa da Suíça, foi a mesma coisa. O “desequilíbrio emocional” culpado pela cor. Por isso, em 58, um relatório encomendado pelo então presidente da CBD, João Havelange, cravou que um sem-número entre negros e miscigenados não apresentava as condições necessárias para defender o Brasil na Copa da Suécia.
Garrincha e Pelé, vetados pelo psicólogo da seleção. Segundo diagnosticara, a origem humilde e racial era indicativo de que os fiascos ocorridos nas Copas anteriores poderiam se repetir nos pés dos que considerara pouco instruídos, e sem maturidade. Alguém desobedeceu. Ainda bem. Pelé e Garrincha entraram pra história, e do psicólogo não me lembro o nome.
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Referências bibliográficas
FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro. Mauad, 2003
ROSSI, Jones; MENDES JÚNIOR, Leonardo. Guia Politicamente Incorreto do Futebol. São Paulo: LeYa, 2014.