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Pode ou não pode?

Ainda falando sobre o caso Rafael Sóbis, uma questão foi bastante debatida: o fato de, por estar aposentado, ele não poder ser processado pela Justiça Desportiva. Mas será que isso é verdade?

Vamos começar no básico: o que fundamenta a existência da Justiça Desportiva? Se você estuda Direito Desportivo há algum tempo já deve saber que a existência da Justiça Desportiva e sua competência estão asseguradas pela Constituição, por meio de seu artigo 217, que diz o que segue.

“Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II – a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III – o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;

IV – a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§ 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.” (Destaque nosso)

Ou seja, segundo a Constituição Federal de 1988 a responsabilidade pela análise de todos os casos que envolvam disciplina e competições esportivas são de competência da Justiça Desportiva e somente poderão ser analisadas pelo Poder Judiciário após exauridas as instâncias desportivas ou caso a Justiça Desportiva quede inerte após o prazo de 60 dias.

Isso parece suficiente para apontar que, com base no que dispõe nossa Carta Magna a competência para analisar os reflexos desportivos da atitude alegada por Sóbis é da Justiça Desportiva. Mas é preciso ir mais fundo na análise e analisar o que diz o CBJD sobre essa questão?

Logo em seu artigo primeiro o Código traz o rol de pessoas que se submetem a ele, e entre essas pessoas nos cabe destacar o que é visto no inciso IV, que aponta a submissão de atletas profissionais e não profissionais.

“Art. 1º A organização, o funcionamento, as atribuições da Justiça Desportiva brasileira e o processo desportivo, bem como a previsão das infrações disciplinares desportivas e de suas respectivas sanções, no que se referem ao desporto de prática formal, regulam-se por lei e por este Código.

§ 1º Submetem-se a este Código, em todo o território nacional:

I – as entidades nacionais e regionais de administração do desporto;

II – as ligas nacionais e regionais;

III – as entidades de prática desportiva, filiadas ou não às entidades de administração mencionadas nos incisos anteriores;

IV – os atletas, profissionais e não-profissionais;

V – os árbitros, assistentes e demais membros de equipe de arbitragem;

VI – as pessoas naturais que exerçam quaisquer empregos, cargos ou funções, diretivos ou não, diretamente relacionados a alguma modalidade esportiva, em entidades mencionadas neste parágrafo, como, entre outros, dirigentes, administradores, treinadores, médicos ou membros de comissão técnica;

VII – todas as demais entidades compreendidas pelo Sistema Nacional do Desporto que não tenham sido mencionadas nos incisos anteriores, bem como as pessoas naturais e jurídicas que lhes forem direta ou indiretamente vinculadas, filiadas, controladas ou coligadas.” (Destaque nosso)

Como vemos, enquanto atleta é claro que ele se submetia ao CBJD, mas hoje ele já não é mais atleta. Ainda é possível que seja julgado com base no CBJD? Essa é a grande pergunta que nos fazemos, e não é possível cravar uma resposta. Há quem defenda que uma vez que a pessoa se desvincula da prática esportiva, ela deixa de ser punível pela Justiça Desportiva. Esse raciocínio é interessante, pois considera que a submissão ao código não é apenas em questões materiais, mas também em questões processuais e, com isso, não poderiam ser processadas pessoas que no momento da denúncia não se submetessem ao CBJD.

Todavia, há uma visão diferente, à qual me alinho e entendo ser mais razoável, até para que casos de impunidade sejam evitados. De fato é indispensável a vinculação do indivíduo ao CBJD para a materialização de eventual infração, ou seja, as atitudes descritas pelo Código somente se aplicam àquelas pessoas elencadas em seu artigo 1º.

No entanto, ocorrida a infração disciplinar, a questão se torna processual, não mais material e, nesse caso, passa a independer de subordinação do indivíduo ao Código. Nesse processo que passa a se submeter ao CBJD são os Auditores e Procuradores da Justiça Desportiva que, durante o processo, deverão cumprir as determinações normativas e processuais, para garantir validade plena ao julgamento.

Isso garantirá que, em casos extremos, pessoas que cometam infrações disciplinares sejam punidas mesmo que, na tentativa de se desvincular da punição, tenham se desligado da modalidade.

Analogamente, podemos citar os julgamentos administrativos de servidores públicos exonerados antes da instauração do processo disciplinar. Como dispõe o Enunciado CGU/CCC 2, de 04 de maio de 2011, “a aposentadoria, a demissão, a exoneração de cargo efetivo ou em comissão e a destituição do cargo em comissão não obstam a instauração de procedimento disciplinar visando à apuração de irregularidade verificada quando do exercício da função ou cargo público.”

Ou seja, um servidor público, ainda que exonerado, poderá ser julgado administrativamente em razão de irregularidades cometidas quando a relação existia, sendo esse o único momento em que é obrigatória a vinculação às normas que regem seu comportamento. Mesma lógica aplicada às normas disciplinares desportivas.

Para deixar mais claro, pensemos no caso hipotético: um dirigente de entidade de prática desportiva, inconformado com a decisão da arbitragem em uma determinada competição invade o campo de jogo portando um revólver e passa a ameaçar o árbitro. Após esse fato, ciente da possibilidade de sua responsabilização nos termos do CBJD e do valor que a multa pode alcançar, deixa de ter vínculo com a modalidade antes da apresentação da denúncia.

Caso o primeiro cenário prevaleça, a Justiça Desportiva nada poderá fazer para punir uma infração disciplinar que efetivamente ocorreu, ao passo que prevalecendo a segunda linha de raciocínio, a infração disciplinar já estará materializada e a Procuradoria da Justiça Desportiva poderá oferecer a denúncia mesmo que o autor da infração tenha se afastado das competições.

Pessoalmente entendo que, mesmo não dito expressamente, após a materialização da infração, o fim do vínculo não impede a atuação da Justiça Desportiva.

Então, se quiserem, os procuradores ainda podem denunciar Sóbis.

Crédito imagem: Cruzeiro

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