Antes de qualquer discussão sobre o VAR, é fundamental conhecer e aceitar a Regra 5. Ela dá ao árbitro poderes para tomar decisões segundo sua própria convicção. Dito isso, já se sabe que no futebol sempre haverá espaço para interpretação.
É só uma introdução importante para uma constatação desse início de temporada que tem esse personagem polêmico do futebol como protagonista: com o VAR, os árbitros estão perdendo a fé nas próprias convicções.
Eles estão preferindo a segurança de uma decisão compartilhada ao risco de assumir aquilo em que acreditam. Isso pode ser por falta de experiência; pelo medo da vigilância absurda; por ter alguém mais experiente na cabine de avaliação.
E gera uma série de interpretações equivocadas e teorias que poderiam ser evitadas.
O Thiago Braga conversou com o ex-árbitro Guilherme Ceretta de Lima e conta mais sobre essa questão importante.
Eram passados 23 minutos do segundo tempo do jogo final do Campeonato Gaúcho quando o lateral gremista Cortez invadiu a área do Internacional e caiu. Caiu ou foi derrubado? No momento, o árbitro Jean Pierre de Lima mandou o jogo seguir. Ao ser alertado pelo árbitro de vídeo de que houve um puxão no calção de Cortez, decidiu revisar o lance. Ao analisar as imagens, Jean Pierre reviu a decisão, marcou o pênalti e revoltou os colorados.
Está faltando personalidade aos árbitros após a implantação do VAR? Os árbitros estão se “escondendo” atrás do VAR? O VAR está influenciando o árbitro de campo? Ter um árbitro mais qualificado no VAR pressiona o árbitro de campo?
Para tentar entender o que está gerando tanta discussão com o VAR no Brasil, o Lei em Campo procurou especialistas para explicar o que está acontecendo nos gramados brasileiros.
“Personalidade cada um tem a sua. O que eles [árbitros] estão fazendo é transferir a responsabilidade, deixando que o jogo real não seja mais o primordial. Você pode errar tranquilamente, não apitar, e depois ver no VAR o que é a realidade. E aí marca com mais segurança. Obviamente que perde a graça. O árbitro acaba virando um robô, apenas um mediador ali dentro [de campo] de decisões fáceis. E as decisões mais complicadas estão sendo feitas virtualmente. Podendo ter os olhos virtuais, uma mão amiga, um ombro amigo para chorar na questão dos erros. Se você marcou, e depois viu que não foi, volta atrás. Se você não marcou e viu que foi, você depois apita. Então, na verdade o árbitro de campo está deixando a responsabilidade só para o VAR. Se eu errar ou acertar, não vai mudar nada”, opinou o ex-árbitro Guilherme Ceretta de Lima.
Voltando ao Gre-Nal, vale lembrar que, pelo protocolo do VAR, todo lance de pênalti deve ser revisado e o árbitro narrar o que viu em campo.
“Dificilmente o árbitro viu em campo o Guilherme Parede segurar no calção do Cortez, pois a visão facilmente fica encoberta da forma como se deu o lance. Por ser um lance de pênalti ou não, o árbitro irá narrar ao VAR o que viu em campo, conforme o protocolo. O árbitro de vídeo verifica se a narração condiz com a imagem. Caso ocorra distinção entre narração e imagem, o árbitro é chamado para revisar o lance e assim ter uma nova oportunidade de avaliar a jogada, isso deve ter acontecido no Gauchão. O segurar o calção por parte do defensor existe, porém é interpretativo se é suficiente para desequilibrar ou não o atacante. Não é porque o VAR chama o árbitro que este precisa necessariamente voltar atrás na sua decisão em campo; ele tem a prerrogativa de revisar o lance pela imagem e manter sua decisão anterior. Assim como às vezes tem que ter a humildade de voltar atrás e assumir equívoco em campo. Após revisão pelo VAR, o árbitro também precisa ter personalidade para analisar a imagem e manter sua decisão do campo conforme a sua interpretação do lance”, analisa a árbitra assistente Renata Ruel.
Outro ponto de discussão é sobre a possibilidade de o árbitro de campo se sentir pressionado ao ter um árbitro no VAR mais experiente, o que poderia influenciar as decisões do juiz. Para Ceretta, é normal confiar mais na opinião de quem já tem mais rodagem.
“Na minha época, fazia quarto árbitro para grandes árbitros. Carlos Eugênio Simon, Wilson Seneme, Sálvio Spínola, e com isso fui crescendo, amadurecendo, aprendendo. Vendo as situações de dentro de campo. Obviamente que, se hoje eu estivesse na mesma situação dentro do campo e esses caras no VAR, eu iria perder um pouco da autoridade. Porque o que esses caras falarem ao meu ouvido, eu podia até olhar na TV, mas não aceitar a opinião deles é complicado”, resumiu.
Ceretta acredita que um dos erros da implantação do árbitro de vídeo no país foi ter esperado para utilizar o VAR na fase final dos torneios. Segundo ele, o mecanismo está sendo testado justamente no período em que já deveria todo mundo estar acostumado com a ferramenta.
O ex-árbitro, que apitou a final do Paulistão de 2015, refuta a ideia de falta de qualidade dos árbitros brasileiros.
“É duro falar da qualidade dos árbitros. Posso falar de comando. Não adianta, se tem um treinador ruim, o time não vai ser bom. As informações, quando são passadas, não devem ser apenas de uma pessoa. Existem aí pessoas que nunca apitaram jogos, nunca estiveram em grandes decisões, informando e indicando para o árbitro o que ele deve fazer”, desabafa.
Uma das grandes dúvidas que estão no ar a respeito da utilização do árbitro de vídeo é sobre quem está tomando a decisão. Pelo protocolo do VAR, o juiz de campo, ao se dirigir ao VAR para ver o lance, se torna o árbitro de vídeo. Não há debate, não discussão de opiniões para saber qual decisão tomar. O árbitro de campo passa a comandar as escolhas de câmera, velocidade, ângulos, mas não está aberto a ouvir opiniões sobre qual decisão tomar.
Pela Regra 5 do livro de regras da Fifa, “o árbitro deve tomar as decisões do jogo com o máximo de sua capacidade, de acordo com as regras e o ‘espírito do jogo’, segundo sua opinião. Em razão disso, o árbitro tem poder discricionário para adotar as medidas adequadas para cumprir a essência das regras do jogo”.
Para não dar margem a interpretações equivocadas, Ceretta pede mais transparência com o VAR e diz que as conversas devem ser divulgadas.
“As conversas entre o árbitro e o VAR ficam obscuras. Quem decidiu, quem foi? Daqui a pouco vai ter votação e os lances serão decididos por maioria da votação, três a dois”, finalizou o ex-árbitro.