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Privilégio branco trava debate sobre racismo no esporte

“A carne mais barata do mercado é a carne negra”, canta Elza Soares na música a “A Carne”. Nesta quarta-feira, 20, comemora-se o Dia da Consciência Negra, data que marca a morte de Zumbi dos Palmares, e o que podemos perceber é que o Brasil ainda tem muito a caminhar em direção à plena visibilidade e representatividade da população preta ou parda, que representa mais da metade (55,8%) do total de habitantes do país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E o esporte não pode ficar de fora desse debate. Embora os negros tenham grande destaque em diversas modalidades esportivas, eles têm que enfrentar dificuldades maiores que os brancos. Números do Observatório da Discriminação Racial no futebol mostram que neste ano já foram registradas 44 denúncias de racismo no Brasil e 18 denúncias envolvendo jogadores brasileiros no exterior, totalizando 62 denúncias de racismo em 2019.

O maior desafio de quem luta contra o racismo é provar para quem não é negro que o preconceito existe. Mas isso passa pelo entendimento de que há um privilégio branco que precisa ser combatido.

“Privilégio branco é poder oportunizar o filho a estudar sem que se preocupe em ajudar dentro de casa, é poder circular tranquilamente sem medo da abordagem policial agressiva e truculenta, é saber que sua cor não será alvo de agressões e impedimento para entrar em determinados lugares, é saber que não será odiado e hostilizado somente por ser branco! Não é vitimismo saber que tu tens que sair diariamente com documentos, sair bem vestido, que você parado é suspeito e que correndo pode ser confundido com ladrão. Não é mimimi ou vitimismo querer ser respeitado e ter seus direitos iguais”, dispara Márcio Chagas da Silva, ex-árbitro e comentarista de arbitragem do Grupo RBSTV, vítima de discriminação após apitar uma partida no interior do Rio Grande do Sul.

Para Marcelo Carvalho, criador do site Observatório da Discriminação Racial no futebol, esse debate só será mais visto quando a população branca encampar a luta, o que ele diz ter aumentado depois do desabafo do técnico Roger Machado, do Bahia, sobre o problema. “Sobre fazer a sociedade não negra perceber o que de fato é o privilégio branco, eu acho que isso a gente só vai conseguir fazer a partir do momento que que não negros se manifestarem. É uma boa provocação que vai começar a ter na sociedade, mas ela precisa ser feita por não negros. Porque se eu, negro, começo a falar sobre racismo, a questão vai ser sempre aquela de ‘mimimi’. Porque na verdade quem está no poder vai sempre tentar botar na cabeça das pessoas que racismo não existe”, argumenta.

A advogada especialista em direitos humanos Mônica Sapucaia usa um exemplo pessoal para explicar o que significa o privilégio branco. “Desde os quinze anos viajo sozinha. Principalmente para países da América do Norte e da Europa e eu nunca fui parada na migração. Sou branca de olho azul. Isso significa que está intrínseco no consciente coletivo de que eu tenho mais direitos do que a pessoa ao meu lado, que tem por exemplo cara de latina. Eu vim do Brasil, ela vem do Brasil, mas eu não tenho cara de latina. Esse o nosso primeiro grande esforço. Racismo é nefasto para a sociedade. Não está em debate. Racismo faz mais mal do que agrotóxicos. Não tem ângulo positivo. Então deveria ser banido. Simples assim, ser massacrado por um discurso antirracista impulsionado pelos estados e pelo sistema educacional. Mas ainda estamos explicando que o jornal não pode colocar ‘advogado é detido comercializando drogas no Morumbi’ e ‘traficante é preso com 20g de maconha em Heliópolis’”, opinou a advogada.

Apesar do protagonismo com a bola nos pés, nas mãos ou pilotando carros velozes, onde inscreveram seus nomes como alguns dos melhores atletas da história, como Pelé, Usain Bolt, Muhammad Ali, entre outros, os negros precisam lidar com a ideia de servirem de “entretenimento”.

“Eu aceito que o negro esteja numa posição que eu determinei que você pode estar. Então você pode estar ali, praticando esporte, me divertindo. Mas não permito que você fale, que você levante a voz pra reclamar qualquer coisa. E eu também não permito que você alcance novos voos. Um exemplo disso são as irmãs Williams. Praticamente a gente pode dizer que estão entre as melhores jogadoras do mundo, no topo do tênis, mas nunca tiveram reconhecimento de como melhores né principalmente porque elas nunca elas nunca aceitaram o racismo que impera dentro do tênis”, declarou Marcelo Carvalho.

Para a advogada Mônica Sapucaia Machado, o problema está no perfil de quem toma as decisões no esporte e em toda estrutura da sociedade.

“Os homens negros quando têm sucesso são jogadores de futebol, jogadores de basquete, atletas. Esse é o recorte que o discurso institucional precisa combater. O racismo não se vence porque não se vê a vantagem do negro no esporte como uma habilidade melhor, mas sim como o agente de entretenimento. Enquanto os homens brancos, héteros e por volta dos quarenta anos fazem as coisas sérias, produzem as coisas importantes para o mundo. Esse é o perfil do poder”, justificou a advogada.

“O racismo estrutural está perpetuado no futebol e demais esportes, assim como em qualquer outra profissão. Por isso esses ídolos negros estão fadados a serem eternos ex-atletas e nunca compõem cargos de poder em seus ex-clubes. Historicamente, no Brasil, a única maneira do negro ascender socialmente é através do esporte e ou da música, as demais profissões já tem seus ‘donos’, lamenta Márcio Chagas da Silva.

Um dos entraves para isso são as punições brandas. Recentemente a Bulgária foi multada em 75 mil euros por conta das ofensas racistas da torcida búlgara aos jogadores da Inglaterra. Só a título de comparação, em 2012, o atacante Nicklas Bendtner, da seleção da Dinamarca, foi multado pela Uefa em 100 mil euros e suspenso por um jogo por ter mostrado um patrocinador na cueca durante a comemoração de um gol.

Márcio Chagas da Silva espera que “a justiça desportiva trate o crime de racismo conforme o código penal, mas de maneira exemplar para que realmente os casos diminuam ao invés de aumentarem a cada ano, conforme os dados do Observatório da Discriminação Racial vem mostrando”, pede o ex-árbitro.

Números do terceiro trimestre deste ano da PNAD Contínua revelam que dos 12,5 milhões de desempregados no país, 65,2% são negros ou pardos. Dados do estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil do IBGE mostram que as taxas de homicídio de 2012 a 2017 entre pessoas pretas ou pardas aumentou de 37,2 para 43,4 mortes para cada 100 mil habitantes, enquanto, para a população branca, o índice ficou estável entre 15,3 e 16. Essa diferença significa que pretos ou pardos tinham 2,7 vezes mais chances de serem vítimas de homicídio em 2017. As diferenças são ainda mais acentuadas na população jovem. A taxa de homicídios chega a 98,5 entre pessoas pretas ou pardas de 15 a 29 anos. Entre jovens brancos na mesma faixa etária, a taxa de homicídios é de 34 por 100 mil habitantes.

“O dia da Consciência Negra foi instituído para lembrar a sociedade brasileira que o fim da escravidão não foi um processo de caridade. É um dia pra marcar uma pauta de reivindicação e debate na questão do racismo”, diz Marcelo Carvalho.

“Não é um dia de comemoração, mas de reflexão para que possamos lembrar que para estarmos hoje em dia questionando, debatendo e existindo, muitos antepassados deixaram sangue e vida nos porões dos navios negreiros, que outros tantos lutaram por igualdade, direitos  e respeito. Falta ao povo brasileiro reconhecer a contribuição dos negros africanos na construção deste país, assim como reconhecer que as feridas da escravatura não foram cicatrizadas e ainda refletem nos dias de hoje”, finaliza Márcio Chagas da Silva.

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