Pesquisar
Close this search box.

Quando Darwin Chorou

Por Tom Assmar

Por que o homem – Homo sapiens – tornou-se ao longo dos anos dominante no nosso planeta ? Surgido há aproximadamente 300 mil anos na África, enfrentou condições climáticas e naturais idênticas aos de outras espécies daquela época, e mesmo não sendo os mais fortes, mais altos ou mais rápidos desenvolveu habilidades e conhecimentos que permitiram transformar caçadores-coletores nômades em construtores de cidades e exploradores do espaço. Fomos – nas palavras do físico Leonard Mlodinow – De Primatas a Astronautas.

Com habilidades físicas limitadas e força muscular inferior às de outros animais, múltiplos campos da ciência tem demonstrado que a explicação para essa dominância vem do excepcional desenvolvimento das estruturas do nosso cérebro, que nos presenteou com duas habilidades raras, mágicas e especiais quando usadas em conjunto: alta competência para construir formas complexas de comunicação e propensão a agir de forma coletiva e cooperada. A chave do nosso sucesso está na força do nosso conjunto, e não nos nossos talentos individuais. Não somos lobos solitários.

For millions of years mankind lived just like animals

Then something happened which unleashed the power of our imagination

We learned to talk

Pink Floyd – Keep Talking

Comunicação e cooperação parecem estar no centro de todas as iniciativas humanas bem sucedidas. A ciência, a religião, as artes, as leis, a cultura, a família ou a construção de cidades são apenas representações físicas ou simbólicas da nossa necessidade de construir vínculos sociais e coletivos identitários, nossa eterna busca por fazer parte de algo maior. E são elas em grande parte que nos dão os sentidos de pertencimento, propósito e motivação que fazem com que não apenas possamos viver a vida realizando tarefas repetitivas ou praticando um roteiro fixo cotidiano, mas acima de tudo que sejamos capazes de pensar e sentir sobre essas ações. Assim somos nós: mesmo fisicamente frágeis, dominamos o mundo quando fomos capazes de pensar, sentir e imaginar. Conhecimento, sentimento e imaginação são os elementos que nos diferenciam e constroem a nossa riqueza como indivíduos ou sociedades.

O esporte em geral e o futebol em particular também ocupa lugar de destaque nessa lista de fenômenos sociais que criam identidades e vínculos coletivos. Torcer por seu clube do coração é uma decisão individual, mas que normalmente carrega um imenso aspecto de pertencimento a algo maior. Pode ser o amor ao seu bairro ou à sua cidade; pode ser um vínculo familiar passado entre gerações; pode ser uma crença política ou religiosa; pode ser até mesmo um ato de rebeldia. Não importam os motivos: quando se é apaixonado por um clube, normalmente há algo a mais no ar.

Só isso pode explicar por que no caso do futebol brasileiro as torcidas dos seus principais e mais populares clubes ainda mantem fortes vínculos de paixão e consumo apesar da consistente queda de qualidade do produto. Horários ruins, calendário com excesso de competições, arbitragem sem critério e péssimos jogos com pouco tempo de bola em jogo, muitas faltas e poucos gols têm construído um produto pouco atrativo, que precisa urgentemente se reinventar se quiser recuperar sua competitividade, prestígio e interesse internacional. Não será fácil nem rápido, mas é possível. E é nesse contexto que temos visto os movimentos de alguns dos principais clubes brasileiros em torno da agenda SAF. Os recentes casos de Botafogo e Cruzeiro trouxeram esse tema definitivamente à mesa das conversas, artigos e programas esportivos. Arrisco dizer que nesse janeiro de 2022 falou-se mais sobre o interesse dos clubes sobre a SAF do que sobre sua janela de contratações de atletas. E se o radar do nosso torcedor está realmente apontando nessa direção, isso pode ser um bom sinal.

Completamente distintos no tempo e na forma de condução (e também nas suas chances de sucesso), os casos de Cruzeiro e Botafogo se assemelham em um aspecto fundamental: ambos chegaram a tal ponto de fragilidade financeira em que simplesmente não havia outra opção. Mas para outros, ainda há tempo de escolher. Transformar-se em SAF não será uma imposição das circunstâncias do presente ou das escolhas do passado, mas sim apenas um dentre outros modelos que tornam possível ter sucesso esportivo sem obrigatoriamente adotar um modelo jurídico empresarial. E de forma velada ou mais explícita, muitos clubes já começaram a desenvolver essas discussões junto aos seus grupos de conselheiros internos ou consultores contratados, avaliando cenários, riscos e oportunidades para decidir ou não pela viabilidade de migração do modelo associativo para a SAF. Ninguém sabe se esses clubes e suas torcidas estarão preparados para as consequências desse movimento que já parece ser irreversível. Mas certo ou errado, definitivamente e com muito atraso, esse trem já saiu da estação. E o grande risco que essa discussão traz é que se focarmos apenas nessa agenda, novamente nossos clubes estarão buscando soluções individuais para seus problemas sem se preocupar com a qualidade do produto como um todo. É sempre bom lembrar que os grandes clubes mundiais não são dominantes ou atrativos apenas porque são SAF´s, mas sim porque são parte de ligas e campeonatos ricos e fortes, construídos coletivamente para que esse produto gere cada vez mais relevância e valor para todos os envolvidos.

No brilhante artigo anterior de Marcelo Azevedo, ele afirma que sua expectativa com a vinda de novos investidores (no caso, John Textor) “menos tem a ver com o seu capital, mas mais em como a sua experiência empresarial pode trazer uma inteligência que permita elevar a qualidade do debate na estrutura do futebol brasileiro, provocando, quem sabe, um crescimento exponencial de toda a indústria, de tal forma que force os clubes a resolverem definitivamente seus modelos gerenciais, e não apenas as suas estruturas societárias”. É um bom ponto, e de fato a mudança precisa começar por algum lugar. Seria possível ter uma liga de clubes antes da lei da SAF ? Provavelmente não, pois clubes fracos não formam ligas fortes. Por outro lado, clubes organizados na forma de SAF´s podem mais facilmente formar uma liga ? Tudo indica que no médio prazo sim, na medida em que forem conseguindo equacionar seus problemas internos de finanças e gestão e possam focar em questões mais coletivas.

Gestão profissional e viabilidade financeira são requisitos fundamentais para que um clube seja competitivo e sustentável, mas sozinhos não conseguem melhorar a qualidade do produto em si. É preciso cuidar dos clubes, claro, mas é fundamental repensar a governança do nosso futebol. Tal qual o Homo sapiens, o futebol brasileiro não é o maior, mais rico, mais forte, mais importante ou mais atrativo. E por enquanto também não conseguiu se comunicar melhor ou agir de forma cooperada. Desde a publicação de A Origem das Espécies em 1859, Charles Darwin nos ensina que os que sobrevivem e se desenvolvem são aqueles com maior capacidade de se adaptar rapidamente às mudanças no seu ambiente. Não adianta lutar contra os mecanismos da seleção natural. Ao longo do tempo, ela é implacável. E no futebol – assim como na natureza – vencerão aqueles que forem mais fortes em conjunto. Não haverá clubes fortes em campeonatos irrelevantes. Indivíduos sobrevivem, mas são as espécies que prosperam. E assim, nossas escolhas mostrarão se no futuro estaremos expostos como astros nos estádios ou fósseis nos museus. Nos ajude, Darwin …

Crédito imagem: Freepik

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


Tom Assmar tem graduação e mestrado em Administração, e atua há mais de 25 anos com gestão, planejamento e finanças. Acredita que o futuro do nosso futebol passa necessariamente pela formatação de um produto que atenda aos interesses coletivos e pela qualificação da gestão dos clubes. É sócio do Futebol S/A.

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.