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Quem xinga o árbitro em uma partida ofende o esporte

Antes de começar, é preciso ressaltar: o “quem” que uso no título são os submetidos à Justiça Desportiva; o que não inclui o torcedor. Na semana passada falei sobre o papel do torcedor na Justiça Desportiva, veja aqui.

Feita a ressalva, vamos ao tópico de hoje. É comum que agressões verbais sejam feitas aos membros da equipe de arbitragem durante uma partida. E também é comum que tais xingamentos saiam das quatro linhas e cheguem aos tribunais desportivos. É que o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) tipifica, no artigo 243-F, a ofensa a honra  – não apenas à da equipe de arbitragem – por fato relacionado diretamente ao desporto.

Mas, ainda que o artigo diga, em sua literalidade, “ofender alguém em sua honra”, o bem jurídico tutelado (não apenas neste artigo, mas pelo CBJD) não é somente a pessoa a quem a ofensa é dirigida, mas o esporte em si, ou, mais precisamente, à Ética Desportiva, que é o bem jurídico que a própria norma aponta como o indicado.

Ocorre que os tribunais tem deixado de punir aquele que pratica a ofensa à honra por entender que se trata de bem jurídico personalíssimo, ou seja, o entendimento é de que, para caracterizar a infração do 243-F, o árbitro (ou qualquer outro ofendido) deve relatar em súmula ou comparecer à sessão de julgamento e expressar que se sentiu pessoalmente ofendido. Caso contrário, não há punição.

Mas observe que quando alguém diz, por exemplo, que o árbitro foi comprado para favorecer uma das equipes, está dizendo que aquele jogo, que aquele campeonato está manchado. Esta situação transcende, e muito, a questão da honra subjetiva.

Se é verdade que o árbitro está comprado, não há mais a incerteza do resultado. Quem está no esporte (praticando, trabalhando, assistindo, promovendo) espera que não haja qualquer interferência que o torne, de alguma maneira, previsível ou que furte o elemento da aleatoriedade.

A manipulação de resultados é um problema capaz de levar a indústria do esporte à falência com a perda de credibilidade. Veja que, se a acusação de que o árbitro foi comprado é verdadeira, o esporte em si está ameaçado. A acusação é grave; o Código prevê a punição a aquele que a praticou porque houve ofensa ao esporte.

Não é dizer que não houve a ofensa à pessoa do árbitro. Sim, houve. Mas a Justiça Desportiva não foi pensada para defender a honrada pessoa natural a quem o xingamento é dirigido, mas à instituição esporte.

Ainda que a ofensa não diga respeito a uma acusação de manipulação de resultado, estará quebrada a disciplina, fragilizada a autoridade de que a equipe de arbitragem deve estar investida.

Uma análise sistemática do o artigo 243-F, e a rigor do próprio Código, nos permite chegar a esta conclusão. Observe o texto do artigo:

Art. 243-F. Ofender alguém em sua honra, por fato relacionado diretamente ao desporto.

PENA: multa, de R$ 100,00 a R$ 100.000,00, e suspensão de uma a seis partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de quinze a noventa dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código.

1º Se a ação for praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, contra árbitros, assistentes ou demais membros de equipe de arbitragem, a pena mínima será de suspensão por quatro partidas.

2º Para todos os efeitos, o árbitro e seus auxiliares são considerados em função desde a escalação até o término do prazo fixado para a entrega dos documentos da competição na entidade.

O legislador fez questão de estabelecer, no § 1º uma punição maior ao aleta treinador, médico ou membro da comissão técnica, contra um membro da comissão de arbitragem.

Ora, fosse a honra subjetiva o bem jurídico tutelado pelo artigo, não haveria a necessidade de estabelecer a penalidade maior a determinado grupo de pessoas, já que honra subjetiva é atingida se a ofensa é praticada por qualquer um, independentemente de ser aleta, treinador, médico ou membro da comissão técnica.

Além disso, só faz sentido que a honra da equipe de arbitragem seja especialmente protegida dos ataques daqueles especificados no § 1º em razão da disciplina que deve guiar seu contato direito com os responsáveis pelas decisões em campo.

Dito de outro modo, se o objetivo fosse proteger os árbitros, a pena seria mais grave se qualquer um os xingasse. Se fosse evitar ofensas proferidas pelas pessoas mencionadas, a pena seria aumentada qualquer que fosse o destinatário.

A dupla condição para a aplicação do §1º deixa inequívoco que o objeto de proteção é a relação entre eles, ou seja, a disciplina esportiva e até mesmo o equilíbrio da equipe durante a partida.

Ademais, o § 2º estabelece o momento em que a comissão de arbitragem é considerada em função (ou seja, fora do período estabelecido, não se considera como conduta praticada contra árbitro). A penalidade maior está ligada a uma reprovabilidade maior, que está ligada à lesão ao bem jurídico tutelado.

Destaco ainda que não somente o artigo 243-F, mas todos os artigos do CBJD que tipificam uma prática punível o fazem porque aquela prática, de alguma forma, prejudica o esporte, a competição desportiva.

Se o atleta pratica uma agressão física (artigo 254-A), ele está, além de atingir fisicamente o colega de trabalho, prejudicando o bom andamento da partida e do campeonato. O mesmo ocorre se o clube inclui na equipe um atleta irregular (artigo 214), se deixa de tomar providências capazes de prevenir e reprimir desordem, invasão e lançamentos de objetos no campo (artigo 213), se o árbitro omite-se no dever de prevenir ou de coibir violência ou animosidade entre os atletas (artigo 260).

Todos estes exemplos são práticas puníveis pela Justiça Desportiva por serem consideradas práticas que ameaçam o esporte e a competição esportiva, ainda que, também, atinjam bens jurídicos puníveis e outra esfera.

Não apenas a Justiça Desportiva foi pensada para defender a instituição, ressalta-se; isto é observado sobre qualquer justiça de natureza disciplinar. Antônio Carvalho, numa releitura da doutrina lusitana sobre o tema, ensina que “o fundamento do poder disciplinar reside na necessidade de qualquer organização de possuir uma organização interna que lhe permita prosseguir seus fins (…) para o que dispõe do poder de sancionar aqueles seus elementos que perturbem o bom funcionamento da organização prejudicando seus objetivos[1]”.

Tudo isto posto, portanto, não há que se falar em absolvição de quem ofende alguém em sua honra caso o ofendido não se declare como tal em súmula ou durante a sessão de julgamento. A exigência desta declaração extrapola o que exige a própria norma, já que a defesa da honra na Justiça Desportiva está ligada diretamente à tutela do esporte, não simplesmente à honra subjetiva do destinatário dos impropérios.

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[1] CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. Manual de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância. Editora Fórum. 4ª Edição. Belo Horizonte. 2014.

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Escrito em colaboração com Tiago Cardoso Penna.

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