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Romelu Lukaku e o racismo escancarado no futebol (e na sociedade) da Itália

Por Igor Serrano

Créditos da imagem: sportinglife.com

No último dia 01/09/19 no duelo entre Inter de Milão e Cagliari, Romelu Lukaku marcou o gol da difícil vitória por 2×1 de sua equipe. No entanto, o resultado foi apagado pelas manifestações racistas dos torcedores do Cagliari sobre o atacante belga ao longo da partida.

Dias depois, uma das torcidas organizadas do time de Lukaku, a Curva Nord, o enviou uma carta, pasmem, defendendo a atitude dos Ultras do Cagliari. Segundo o texto, “os sons que imitavam macacos seriam apenas um artifício para desestabilizá-lo” e pedia que o camisa 9 entendesse a discriminação racial “como uma forma de respeito ao fato de que eles têm medo de que você faça gols“, dizendo que os rivais “se comportam dentro do estádio de maneira diferente do que quando estão na vida real” e que por isso “não poderiam ser considerados racistas”. Infelizmente, o histórico recente no futebol da Itália, e principalmente dos torcedores do Cagliari, da região da Sardenha, evidenciam o oposto.

Duas semanas depois do duelo contra o Cagliari, o jornalista Luciano Passirani, ao elogiar o desempenho de Lukaku com a camisa da Inter, declarou no programa Top Calcio 24: “Não ver na Itália, atualmente, nenhum jogador, em nenhuma outra equipe, melhor que Lukaku, nem na Juventus, Milan, Roma ou Lazio. Ele é forte, faz gols… no um contra um, ele é mortal. Para pará-lo, você tem de dar dez bananas para ele!”. Ato contínuo, ao ser repreendido pelo apresentador da atração esportiva, disse tratar-se de uma brincadeira. Pelo fala em rede nacional, Passirani foi demitido.

Neste ano, o atacante Moise Kean e o volante Blaise Matuidi, ambos da Juventus, também foram alvos de cânticos racistas, em abril e janeiro, nos duelos também contra o Cagliari, cuja torcida, em 2017, já havia conseguido fazer o meia ganês Sulley Muntari do Pescara ser expulso (pela indignação expressada com as ofensas racistas recebidas e a letargia do árbitro em cessá-las) e possui no histórico uma punição de 25 mil euros por gritos racistas direcionados ao camaronês Samuel Eto’o, então atacante da Inter de Milão, em 2010.

No último dia 22/09/19, o lateral brasileiro Dalbert, da Fiorentina, em partida contra a Atalanta, também ouviu cânticos racistas da torcida adversária. O sistema de som do estádio Ennio Tardini alertou os torcedores sob a situação, que responderam com vaias. O jogo ficou paralisado por três minutos até que se interrompesse o comportamento discriminatório direcionado ao atleta. O presidente da FIFA, Giani Infantino, logo após o duelo declarou que: “O racismo se combate com educação, condenando, falando nele. Não se pode ter racismo na sociedade e no futebol. Na Itália, a situação não melhorou, isso é grave. Precisamos identificar os autores e expulsá-los dos estádios. É preciso, como na Inglaterra, a certeza da punição. Não devemos ter medo de condenar os racistas, devemos combatê-los até o fim”.

Em janeiro, na sexta divisão do Campeonato Italiano, no duelo entre Serino e Real Sarno, o goleiro senegalês Gueye Ass do Serino recebeu ofensas raciais do árbitro durante a partida. Em resposta, o presidente da equipe determinou que o time abandonasse o campo. Um mês antes, em dezembro de 2018, manifestações racistas por parte da torcida da Inter de Milão ofenderam, ao longo de praticamente toda a partida, o zagueiro senegalês Koulibaly do Napoli, em duelo entre as equipes. Por pelo menos três vezes, em vão, o sistema de som do estádio solicitou que cessassem. Na ocasião, o técnico da equipe napolitana, Carlo Ancelotti, declarou que: “Nós pedimos três vezes para que alguma ação fosse tomada, mas a partida continuou. Continuavam dizendo que o jogo poderia ser interrompido, mas quando? Depois de mais quatro ou cinco anúncios? Na próxima vez, talvez tenhamos que resolver com as próprias mãos e sair de campo. Eles provavelmente vão nos fazer desistir do jogo, mas estamos preparados para isso. Koulibaly estava certamente irritado. Ele normalmente é muito calmo e profissional, mas ele ouviu sons de macaco durante a partida inteira” (Koulibaly foi expulso após tomar o segundo cartão amarelo, aos 35 minutos do segundo tempo). A Federação Italiana puniu a Inter de Milão com dois jogos em casa com portões fechados e um terceiro, com o setor de onde partiram as manifestações, parcialmente interditado.

Fonte: Jornal La Gazzetta dello Sport de 28/01/19

Em 2013, o atacante alemão de ascendência ganesa, Kevin Prince-Boateng, ouviu cânticos racistas dos torcedores do Pro Patria, equipe da terceira divisão italiana, no duelo contra seu time, o Milan. Como as manifestações não cessavam, o atleta chutou a bola em direção à torcida do Patria, tirou a camisa e deixou a partida. Em 2008, a Juventus foi obrigada a jogar uma partida com portões fechados após seus torcedores entoarem cânticos racistas dirigidos ao atacante da seleção italiana Mario Balotelli. O racismo no futebol italiano, como resta escancarado, parece um mal cada vez mais longe de ser vencido e isso vai muito além das quatro linhas.

O ex-companheiro de Seleção Belga de Lukaku, o zagueiro Vincent Kompany, ao comentar os desdobramentos do ocorrido em Cagliari x Inter de Milão (a Federação Italiana não puniu o Cagliari por entender que “em termos de dimensão e percepção real, os cânticos proferidos pelos torcedores não foram considerados discriminatórios sob o código disciplinar da liga italiana”), alertou para a falta de diversidade nos cargos de comando do futebol e como isso interfere diretamente na forma de compreender e se empenhar no combate ao racismo: “Voltamos a quem deve tomar decisões sobre esse assunto e o problema está nessas organizações. O verdadeiro racismo é o fato de que nenhuma dessas instituições tem representantes que conseguem realmente entender pelo que Romelu está passando. Você está lidando com pessoas e tomadores de decisão que estão dizendo como ele deveria pensar e se sentir sobre isso, enquanto você não tem nenhum tomador de decisão remotamente em contato com a experiência de vida dele. Esse é o verdadeiro problema. Se você passar pelas diretorias da Uefa ou da Fifa, das ligas da Itália e da Inglaterra, há uma falta de diversidade. Se você não tiver diversidade em posições de poder, então você não pode ter as decisões certas em termos de punição. É simples assim”.

A falta de empatia e compreensão do que é racismo ficou ainda mais evidente na fala recente de Giovanni Malagò, presidente do Comitê Olímpico Italiano. Ao ser questionado, no programa 24 Mattino da Radio24, sobre os recentes episódios de discriminação racial nas arquibancadas do país, declarou que simular um pênalti é mais grave do que ofender racialmente alguém: “Erra quem vaia um jogador negro, mas erra ainda mais quem ganha 3 milhões de euros e se joga na área”.

Sobre racismo e lugar de fala, sempre oportuno recordarmos as lições do professor Silvio de Almeida e de Djamila Ribeiro, respectivamente:

[…] o racismo é uma forma sistêmica de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertencem. […] Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. O racismo é parte de um processo social que ocorre “pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição” (ALMEIDA, 2019. p. 32 e 50).

[…] pessoas negras vão experimentar o racismo do lugar de quem é objeto dessa opressão, do lugar que restringe oportunidades por conta desse sistema de opressão. Pessoas brancas vão experenciar do lugar de quem se beneficia dessa mesma opressão (RIBEIRO, 2017. p.88).

Saindo do esporte para um contexto mais amplo, para melhor compreensão da Itália, a população é composta por pouquíssimas pessoas negras, sendo a maior parte destas imigrantes, que além do racismo são expostas a xenofobia. Segundo estudo feito, em 2018, pela Comissão Parlamentar Italiana Sobre Intolerância, Xenofobia e Racismo, a maior parte dos italianos pensa que “a proporção de imigrantes do país corresponde a 30%”, quando na realidade é de apenas 8%. No mesmo estudo foi informado que “cerca de 56,4% dos italianos acreditam que há muitos imigrantes” e que “52,6% pensam que o aumento do número de imigrantes favorece a difusão da criminalidade e do terrorismo”.

Para piorar ainda mais o panorama, o ex-Ministro do Interior, Matteo Salvini (líder da Liga, partido da direita nacionalista), criou legislação que criminaliza a imigração, proibindo embarcações com refugiados de atracarem nos portos italianos, o que só estimula o aumento do sentimento racista e xenófobo, em parte da população, justamente em um momento que se busca o contrário na maioria dos países do mundo (Matteo Salvini, a propósito, ao comentar o episódio envolvendo Koulibaly no duelo Napoli x Inter de Milão, disse que “Nos estádios também cantam ‘Milão em chamas’. Isso seria racismo? Não coloquemos tudo no mesmo saco. Bonucci, zagueiro [italiano branco] da Juventus, foi vaiado pelos torcedores do Milan, isso também é racismo? A brincadeira saudável entre torcidas não pode ser considerada racismo”, em sentido oposto ao do Prefeito de Milão, Giuseppe Salala, que pediu desculpas à Koulibaly). A Itália, vale lembrar, pelo acesso marítimo que possui, costuma a ser uma rota visada pela imigração clandestina.

Graças a política de Salvini, duas comandantes do navio Sea Watch 3 estão sendo processadas por resgatar imigrantes em situação de necessidade no mar e levá-los a solo italiano. Em 29/06/19, a bióloga marinha alemã Carola Rackete foi presa, após atracar na Sicília com 40 imigrantes resgatados do Mar Mediterrâneo, que tinham sido encontrados em uma jangada inflável à deriva próximo à costa da Líbia. Antes de Rackete, Pia Klemp também foi acusada pelo Tribunal da Sicília de cumplicidade com a imigração ilegal. Se condenadas, ambas podem pegar até 20 anos de prisão.

Tal como no Brasil, a Itália nos mostra que “o futebol fornece uma espécie de mapa cultural, uma representação metafórica, que melhora nossa compreensão daquela sociedade” (GIULIANOTTI, 2010. p. 08). Infelizmente.

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REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do futebol: dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. Tradução Wanda Nogueira Caldeira Brant e Marcelo de Oliveira Nunes. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento/Justificando, 2017.

ansabrasil.com.br/brasil/noticias/italianos/noticias/2019/02/07/populacao-da-italia-encolhe-pelo-quarto-ano-seguido_6b378a8c-6acf-4072-bd04-88243a14aaa6.html

br.rfi.fr/esportes/20181227-inter-de-milao-e-punida-apos-ofensas-racistas-jogador-senegales-do-napoli

istat.it/en/population-and-households?data-and-indicators

globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-italiano/noticia/cantos-racistas-para-koulibaly-mancham-vitoria-da-inter-tenho-orgulho-da-cor-da-minha-pele.ghtml

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globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-italiano/noticia/presidente-do-comite-olimpico-italiano-diz-que-cavar-penalti-e-pior-do-que-coro-racista.ghtml

g1.globo.com/mundo/noticia/2018/08/01/italia-estudo-mostra-que-populacao-tem-ideias-equivocada-sobre-imigrantes.ghtml

lance.com.br/futebol-internacional/ministro-minimiza-racismo-sofrido-por-koulibaly-brincadeira-saudavel.html

lance.com.br/futebol-internacional/prefeito-milao-pede-desculpas-koulibaly-apos-cantos-racistas.html

terra.com.br/esportes/cagliari-escapa-de-punicao-por-cantos-racistas-contra-lukaku,2e1f1d083c3490bafded6fe5711f5fe06hl6dljo.html

trivela.com.br/sem-diversidade-em-posicoes-de-poder-o-futebol-nao-consegue-combater-o-racismo-diz-kompany/

veja.abril.com.br/esporte/jornalista-italiano-e-demitido-por-comentario-racista-sobre-lukaku/

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Igor Serrano é advogado, pós-graduado em Direito Desportivo pela Universidade Cândido Mendes e autor do livro “O racismo no futebol brasileiro”

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