A semana nos reservou dois casos emblemáticos para entendermos os mecanismos regulatórios das ligas esportivas norte-americanas.
Um envolve o Phoenix Suns, cujas chances de classificação aos playoffs da NBA deixaram de existir antes mesmo do encerramento da temporada regular.
O outro é a extensão contratual de US$ 500 milhões que Vladimir Guerrero Jr. acabou de assinar com o Toronto Blue Jays, o mais recente acordo multimilionário firmado no âmbito da MLB.
Começando pelo basquete, a situação do Phoenix Suns serve, de fato, como um alerta para o restante da liga.
Do time vice-campeão em 2021, somente Devin Booker permanece no elenco, totalmente transformado desde que, em meio à temporada 2022-2023, Mat Ishbia assumiu o controle como novo proprietário da franquia.
Além das quatro escolhas de primeira rodada enviadas na troca com o Brooklyn Nets por Kevin Durant, operação que também custou ao Suns a perda do jovem e talentoso Mikal Bridges, todas as demais escolhas de Draft da equipe até 2031 já foram negociadas.
Várias delas “evanesceram” naquele que é considerado o pior movimento de mercado feito por um time da NBA em muito tempo: a aquisição de Bradley Beal.
O Washington Wizards, ex-equipe de Beal, provavelmente aceitaria “qualquer coisa” para se livrar do contrato excessivamente oneroso do atleta, que, como se não bastasse o alto salário, ainda tinha o poder de barganha propiciado pela famosa no-trade clause, previsão contratual que dá ao jogador a prerrogativa de vetar trocas que ele não julgue vantajosas.
Porém, ciente da ansiedade de Mat Ishbia por montar um time que fosse instantaneamente candidato ao título (ao menos em teoria), a franquia da capital dos Estados Unidos conseguiu que o Suns enviasse, na troca pelo atleta, cinco escolhas de segunda rodada e quatro trocas de escolhas.
Totalmente sem flexibilidade para conseguir outros ativos e flagelado por lesões, o Phoenix Suns simplesmente não conseguiu transformar o trio Booker, Durant e Beal em uma equipe de verdade, limitando-se a fazer transações marginais para compor um elenco que jamais mostrou coesão.
O projeto, enfim, fracassou. E nem mesmo a provável troca de Kevin Durant na próxima janela de negociações mudará esse cenário para o futuro.
Embora continue sendo um dos melhores jogadores da liga, Durant já está na fase final da carreira e possui somente mais um ano de contrato, algo pouco atraente no mercado de trocas.
Como Bradley Beal não demonstrou interesse em renunciar à sua no-trade clause, preferindo permanecer em Phoenix, o que resta para o Suns, então?
Devin Booker, de 29 anos, é o “rosto” da franquia e um dos pontuadores de maior arsenal ofensivo dos últimos anos. Recrutado pelo time do Arizona em 2015 e ainda com um longo tempo de carreira pela frente (idealmente vestindo uma só camisa), o atleta tem US$ 171 milhões para receber nas próximas três temporadas.
Há alguns meses, a opção de se desfazer de Booker para iniciar uma reconstrução total pareceria uma completa insanidade. Hoje, contudo, ela já aparece no horizonte como uma alternativa a ser considerada.
Para piorar, o Phoenix Suns tem, ao lado do atual campeão Boston Celtics, uma das maiores folhas salariais da liga, com quase US$ 220 milhões comprometidos para a próxima temporada e US$ 11,4 milhões ultrapassando o chamado second apron.
Conforme já explicamos aqui, o vigente acordo coletivo de trabalho da NBA trouxe uma novidade que vem atormentando os donos das equipes: à medida em que vão excedendo o teto salarial, os times se aproximam de limites que implicam severas punições não apenas financeiras, mas também esportivas.
Tanto a NBA quanto a MLB aplicam um mecanismo regulatório que possui dois objetivos: conter gastos exagerados e promover um maior equilíbrio competitivo. Trata-se da luxury tax (oficialmente chamada de Competitive Balance Tax na liga de beisebol), que penaliza financeiramente as franquias que ultrapassam um certo limite na folha salarial, redistribuindo os valores arrecadados entre as demais equipes.
Na MLB, quem extrapola um determinado valor em salários de atletas (cerca de US$ 237 milhões na temporada atual) paga uma multa proporcional ao excesso, a qual começa em 20% e pode chegar a até 95%, dependendo da reincidência e de faixas que determinam o grau da penalidade.
Na NBA, a cada dólar gasto para além do teto salarial, o custo da extravagância financeira vai aumentando progressivamente. Por exemplo: para cada US$ 1 gasto acima do teto salarial até certo ponto, o infrator paga US$ 1,50; para cada US$ 1 gasto acima do teto salarial a partir desse ponto, o infrator paga US$ 2,50, e assim por diante.
Após o acordo coletivo de trabalho celebrado entre a NBA e a associação dos atletas em 2023, no entanto, passaram a existir outros níveis de penalização para além da luxury tax.
O primeiro deles é intitulado first apron. Uma vez atingido, ele impede a franquia de recorrer a uma popular modalidade de contratação que se chama sign-and-trade (o atleta assina um contrato com uma equipe para, logo em seguida, ser trocado para outra).
Além da perda do direito ao sign-and-trade, atingir o first apron impossibilita que a franquia se valha de uma das exceções previstas no acordo coletivo de trabalho pelas quais o time pode contratar um jogador mesmo estando acima do teto salarial. Estamos falando da exceção bianual, que pode ser usada uma vez a cada dois anos para a contratação de atletas cujo salário seja inferior a um certo montante, que gira em torno de US$ 4,7 milhões nesta temporada.
No mais, quem incide no first apron não pode adquirir jogadores dispensados durante a temporada regular cujos salários sejam superiores a um patamar pré-definido. As trocas também se tornam mais difíceis, pois a equivalência salarial necessária para a realização delas tem uma margem de tolerância menor (10%, em vez dos usuais 25%).
Já a segunda barreira adicional à luxury tax, na qual o Phoenix Suns incidiu, é o temido second apron, que torna praticamente impossível modificar um elenco para melhor.
Isso porque, além de todas as restrições impostas pelo first apron, as equipes que “invadem” o second apron (i) ficam impedidas de contratar jogadores utilizando a taxpayer mid-level exception (uma exceção para contratos de, atualmente, até US$ 5,2 milhões), (ii) não podem somar salários de vários jogadores para criar uma trade exception (gerada quando um time troca um atleta por um retorno menor em salários), (iii) não conseguem incluir dinheiro em uma operação para viabilizar trocas, (iv) não são autorizadas a utilizar uma trade exception gerada em ano anterior e (v) tampouco podem usar em negociações, durante 7 anos, escolhas de primeira rodada do Draft.
O second apron para a temporada 2025-26 está estabelecido em aproximadamente US$ 208 milhões.
Uma coisa é gastar tanto dinheiro para manter um elenco campeão, como faz o Boston Celtics. Outra é gastar esse mesmo dinheiro, e sequer se classificar para os playoffs, caso do Phoenix Suns.
Não bom o bastante para disputar o título, mas sem os “incentivos” para ser suficientemente ruim a ponto de aumentar as chances de recrutar novatos mais valiosos nas temporadas seguintes, o Suns corre o risco de permanecer em um terrível limbo por anos a fio, algo totalmente distante das ambições que levaram Mat Ishbia a pagar US$ 4 bilhões para fazer parte do seleto “clube” de bilionários que são donos de franquias esportivas.
Passando para o beisebol, a extensão contratual de Vladimir Guerrero Jr. com o Toronto Blue Jays chamou a atenção não só pelo valor a ser pago durante os 14 anos de contrato.
O mais curioso foi que, dos US$ 500 milhões do acordo, US$ 325 milhões foram classificados como “bônus de assinatura”. Ou seja, uma grande parte do contrato de Guerrero será paga não como salário, e sim como “luvas”.
Qual seria a estratégia por trás desse arranjo?
O acordo coletivo de trabalho da MLB não determina um limite que possa ser pago a título de “bônus de assinatura”, conquanto este seja incluído no cálculo do valor médio anual para fins de aplicação da Competitive Balance Tax.
Para o jogador, a grande vantagem é tributária: o “bônus de assinatura” é tributado no estado de residência do atleta e Guerrero reside na Flórida, que não cobra o imposto de renda estadual. Na prática, pois, são milhões de dólares economizados para o canadense-dominicano.
Adicionalmente, “bônus de assinatura” não dependem da efetiva prestação de serviços, de modo que Guerrero fará jus à quantia mesmo se houver paralisação da MLB na hipótese de um impasse nas tratativas para a celebração de um novo acordo coletivo de trabalho (o atual expira em 1º de dezembro de 2026).
Para o Blue Jays, manobras contábeis autorizadas pela liga permitirão que parte do “bônus de assinatura” não seja contabilizada na folha de pagamento nesta temporada.
Se você quer entender os mecanismos regulatórios que regem os esportes americanos, é preciso “seguir o dinheiro”. Assim se rastreiam os “atalhos” tributários e se descobrem os porquês dos contratos, das trocas e, muitas vezes, do sucesso ou do insucesso esportivo.
Crédito imagem: Robert Gauthier/Los Angeles Times via Getty Images
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