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STJD do Futebol “versus” Covid-19: a contribuição da Justiça Desportiva ao combate à pandemia

Por Milton Jordão [1]

A pandemia de Covid-19 provocou uma série de mudanças até então imprevistas. O seu alcance não é somente no espectro médico e sanitário, estes, pode-se dizer, hoje, são a “ponta do iceberg“. Seguramente, as inovações e adaptações às exigências que desdobram do isolamento social, em boa parcela, poderão sobreviver e serem incorporadas ao dia a dia[2].

Os mais diversos campos da vida em sociedade foram alcançados, afinal, se vive deveras em função da atividade profissional. Então, a maior parte das pessoas, que passam a maior parte dos seus dias fora do lar, se viu compelida a resumir-se à casa. Ali passou a servir de tudo: escola, escritório, academia, cinema, etc. Quaisquer atividades que prescindiam de contato com público ou que gerasse aglomerações de pessoas foram, pouco a pouco, sendo proibidas.

O esporte, em especial futebol, passou a entrar na mira dos decretos (municipais ou estaduais) e das próprias entidades de administração do desporto, que compreenderam a situação vivida e suspenderam os campeonatos até então disputados. Atualmente, as federações estaduais, em suma maioria, têm envidado esforços para criar protocolos e vê-los implantados para iniciar o retorno dos jogos, além de manter estreitos diálogos com os poderes públicos visando garantir mais segurança ao intento.

A Justiça Desportiva do futebol não ficou inerte em relação à pandemia, nem mesmo se viu abalroada por ela. Tão logo se verificou uma crescente nos casos de contágio no Brasil, a Presidência do STJD decidiu, em 16 de março de 2020, a suspensão das atividades da corte, em especial os prazos e sessões de julgamento, como medida de cautela e proteção aos funcionários da Secretaria, aos auditores, aos procuradores, aos advogados e às partes (Resolução n. 02/2020[3]).

Contudo, a corte não ficou apenas no aguardo de boas novas ou ao sabor do vento, adotou caminho próprio e protagonismo em relação ao combate à Covid-19. Trouxe a lume a Resolução n. 03/2020[4], que, excepcionalmente, previa a atuação do STJD durante a suspensão dos prazos e atos judicantes, por meio da apresentação de Transação Disciplinar Desportiva (TDD) direcionada a entidades e/ou órgãos cuja função seria enfrentar a pandemia que nos assola.

É deveras interessante a medida na perspectiva de que a TDD não é empregada de forma contumaz – seja no STJD, seja nos TJD Regionais – mas se revela desde sua inclusão no sistema normativo disciplinar desportivo (na reforma de 2009). Esse instituto, saliente-se, objetiva diminuir o excesso de feitos que tramitam na Justiça Desportiva, por meio de acordos entre as partes, que são homologados por um dos integrantes do Pleno do Tribunal.

Convém assinalar que a TDD é bem definida pelo CBJD, no que tange às possibilidades de cabimento, em relação às espécies de infração e a critérios subjetivos atinentes ao suposto infrator (art. 80, § § 1º e 2º); outro aspecto relevante é a consideração de que, ao se submeter à aplicação de pena antecipada e medida de interesse social – definidas no acordo com a Procuradoria de Justiça Desportiva –, o suposto infrator não poderá ser considerado reincidente.

Com efeito, tenho a TDD como um instituto utilíssimo ao bom funcionamento da Justiça Desportiva, com a missão de desafogar e dar vazão à celeridade processual, cumprindo o desiderato constitucional que se encontra petrificado na CRFB/88 e os princípios que a norteiam.

Contudo, a despeito disso, na construção normativa do instituto, tem-se que a controle de legalidade ficou a cargo de um dos auditores do Tribunal Pleno, o que, para muitos, seria burocratização do trâmite. Particularmente, penso que o mais adequado seria que o relator fosse o auditor para quem o feito fosse distribuído, de acordo com as regras de competência devido à matéria estabelecidas pelos próprio Código[5].

Todavia, não se pretende aqui discutir o acerto ou erro do legislador desportivo, somente avaliar a aplicação – oportuna, friso – da TDD nesse quadrante da luta contra a pandemia.

Voltando olhares para a Resolução n. 03/2020, tem-se uma simplificação do acesso e oportunização que concede o Tribunal àqueles que, em tese, fazem jus ao benefício. Tem-se que caberá ao Senhor Procurador Geral de Justiça Desportiva avaliar quais casos se enquadrariam e fariam à concessão.

Há uma desburocratização acentuada quando se prescinde de formalidades para que as partes manifestem o desejo de transacionar, aceitando-se que o envio de ­e-mail da Procuradoria, desde que motive a mensagem eletrônica, sirva para a Corte como manifestação válida.

Apesar disso, não se pode afirmar que o STJD flexibilizou o CBJD ou legislou neste caso. Somente, ao se considerar as dificuldades e a urgência em contribuir, o aceite de e-mails ao invés de petições, em nada desnatura o que se encontra no CBJD. Ali, constam os critérios legais para que o benefício seja concedido, não se especifica a forma de manifestação da vontade das partes.

Há, ademais, uma inovação no art. 4º da mencionada resolução que extrai das entrelinhas do que reza a disposição legal. Não se verifica expressamente no Código que as partes poderão dialogar, por iniciativa do suposto autor do fato, o texto induz que é incumbência exclusiva da Procuradoria propor à parte a transação. Nunca o revés.

No aludido artigo, o STJD expressa que as partes poderão encaminhar as suas propostas, para que sejam remetidas à Procuradoria. Este aspecto me parece muito interessante, porque a Lei Desportiva, como dito, não estimula diretamente que o suposto autor busque a TDD, mas, também, não o proíbe de fazê-lo.

Outro ponto que merece destaque na Resolução é o artigo 5º, em que há uma concentração das decisões sobre concessão ou não de TDD na Presidência, tendo em vista que o Tribunal tinha prazos e atos judicantes suspensos.

O CBJD não prevê que o processamento e decisão sobre concessão/denegação da TDD seja de competência exclusiva do Presidente da Corte. Então, é possível dizer que os acordos firmados nesse período são passíveis de anulação?

A resposta é negativa. Por dois fundamentos, o primeiro deles reside na autonomia da vontade das partes, o acordo celebrado não pode ser modificado pela Corte, salvo se houve qualquer impeditivo descrito no CBJD. O segundo, reside nos princípios da celeridade e razoabilidade (art. 2º,  incisos II e XIV), posto que em momentos de urgência, onde o próprio Tribunal se encontrava em regime de plantão.

Entrementes, convém que estes atos devem ser ratificados pelos relatores, para os quais os processos forem sorteados, em apreço ao princípio do juiz natural, mesmo que, conforme reze o artigo 10, o Pleno tenha aprovado a resolução à unanimidade.

Os demais artigos versam sobre orientação e indicação de entidade para qual deve se destinar a TDD, visando otimizar e imprimir mais presteza, bem como da sugestão de pena a ser imposta cumulativamente com a medida de interesse social. Com acerto, a pena sugerida foi a de multa, no valor de R$ 1,00 (hum real), o que revela ser o objetivo dessa Resolução a contribuição com a guerra contra a covid-19.

Com efeito, esta Resolução pode reacender a TDD no âmbito da Justiça Desportiva, desta feita, estimulada por pedidos formulados pelas defesas técnicas, diretamente, ao Tribunal ou à Procuradoria. E, não mais se quedará inerte aguardando uma proposta.

Logicamente, muitos fatores influem, deste o quanto se reclame como pena e medida de interesse social (a capacidade do infrator poder arcar com os custos, especialmente), quanto a falta de atenção dos jurisdicionados em relação ao uso deste direito objetivo que lhe faculta a lei – mormente, o CBJD empregue a expressão “a Procuradoria poderá”, no artigo 80-A, mas se está diante do “poder-dever”, bastando que estejam preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos.

Resta-nos, pois, aguardar a divulgação de dados a respeito dessa iniciativa, que desafogará o Tribunal e fará muito bem àqueles que estão na linha de frente do combate à covid-19, para avaliar o interesse das partes na abreviação do processo pela via da TDD.

 

[1] Advogado. Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL. Mestrando em Direito Desportivo pela Universidade de Lleida (Espanha). Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB Nacional. Presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA). Ex-presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/BA. Presidente do STJD do Judô. Ex-procurador do STJD do Futebol. Autor de artigos e obras jurídicas sobre Direito Desportivo.

[2] Interessa anotar que algumas empresas já anunciam mudança nas suas práticas, passando a adotar o home office como realidade e futuro. Disponível: < https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2020/05/facebook-adotara-home-office-permanente-para-seus-funcionarios.html> Acessado em 25 mar 2020.

[3] Disponível em: < https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202003/20200316162344_868.pdf> Acessado em 25 mai 2020.

[4] Disponível em: < https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202004/20200406131014_679.pdf> Acessado em 25 mai 2020.

[5] Nesse sentido, detalho minha opinião in Código Brasileiro de Justiça Desportiva  – Comentários à Resolução CNE 29, de 10..12.2009, Ed. Juruá, 2012: p. 105-109.

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