Monoteísmo é a crença na existência de apenas um único Deus. Para as religiões monoteístas como o cristianismo, o islamismo e o judaísmo, por exemplo, Deus tem os atributos da onisciência, onipotência e onipresença.
Quanto à onipresença, Deus está vendo o que começou a acontecer no campeonato brasileiro. Inúmeros casos de Covid-19 entre atletas já contaminaram a primeira rodada, levando partidas a serem adiadas.
Entretanto, não é preciso ser onisciente para saber que isto iria acontecer. Quem acompanha esta coluna sabe muito bem que em nossa Crônica de uma contaminação anunciada, publicada ainda no mês de abril, já havíamos vaticinado o que estaria por vir.
Naquele artigo cogitávamos sobre problemas jurídicos importantes que poderiam surgir e que deveriam ser contornados antes das competições. Infelizmente nada a respeito foi disciplinado pela entidade organizadora da competição, nem houve qualquer demanda pelos clubes.
É bem verdade que a CBF publicou uma “diretriz técnica operacional para retorno das competições”. Ela tem como objetivo detalhar e regulamentar os conceitos empreendidos no “guia médico de sugestões protetivas para o retorno às atividades do futebol brasileiro” e se tornou parte integrante do regulamento específico de cada competição.
Ocorre que essa diretriz trata apenas de questões de logística, testagem e controle médico para a realização das partidas. Nada cuidou das repercussões jurídicas inerentes aos jogos. Numa frase: existe um protocolo médico, mas não há um “protocolo jurídico”.
Para não dizer que nada há a respeito em matéria de Direito, nas disposições finais da instrução consta o seguinte: “A inobservância ou descumprimento desta Diretriz sujeitará o infrator às penalidades administrativas de advertência ou multa pecuniária, previstas no art. 53 do RGC. Tais penalidades serão aplicadas pela CBF independentemente das sanções que venham a ser impostas pela Justiça Desportiva, com base no CBJD”
Entretanto, o documento só cogita a hipótese de punir clubes que transgridam os seus preceitos. Nada dispõe, por exemplo, sobre o adiamento das partidas em caso de contaminação dos atletas, mesmo que todo o protocolo seja cumprido. Quantos atletas contaminados são necessários para adiar uma partida?
Essa pergunta se apresentou logo na primeira rodada. Com 10 dos seus 23 atletas concentrados tendo testado positivo, o Goiás ingressou no STJD com uma medida inominada requerendo o adiamento da partida, o que foi deferido.
Conquanto a decisão liminar do Presidente parece ter sido adequada, não se afigura correto que se coloque nos ombros do STJD tamanha responsabilidade e poder, para que, a todo e qualquer momento, ele possa adotar um critério que bem entenda, a fim de decidir os problemas desportivos relacionados à pandemia.
Como o filho que busca o aconchego do Pai eterno para os problemas de sua vida, os clubes deverão correr para o STJD em busca da proteção diante da Covid-19. Só que contrariamente aos religiosos, que possuem preceitos a serem seguidos, as agremiações não detém qualquer base normativa a amparar suas pretensões.
Como sabemos, a lei é uma forma de limitação do arbítrio do Juiz. Guardadas suas devidas proporções, no Direito Desportivo o regulamento da competição é o balizamento que circunscreve o poder de decisão do auditor.
Em seu “Espírito das Leis”, verdadeira Bíblia da limitação do arbitrio, Montesquieu já advertira que um poder deve editar as leis e outro deve julgar de acordo com essas mesmas leis. É assim que um Poder limita o outro, num sistema de freios e contrapesos.
É bom lembrar que a sigla STJD significa Superior Tribunal de Justiça Desportiva e não Superior Tribunal de Justiça Divina. Como sustentam os monoteístas, só Deus é onipotente. Apenas Deus tem todo poder, completo e ilimitado. Só Deus é todo-poderoso.
Sem ter culpa por isso, o STJD acabará sendo alçado a essa condição, pelo menos no futebol. Inúmeras outras questões serão levadas ao Tribunal sem que tivessem sido minimamente regulamentadas. E houve tempo para isso. O campeonato começou com mais de três meses de atraso e clubes e CBF poderiam ter feito algo para reduzir a margem de discricionariedade da Justiça Desportiva.
Tudo isso só gera insegurança jurídica. Aliás, insegurança não combina nem com o Direito nem com a religião. O Direito existe precisamente para dar estabilidade às relações sociais. Na religião, aqueles que buscam Deus assim o fazem querendo abrigo para suas aflições e acolhimento para sua vida além-túmulo.
Por isso é que procuram seguir seus códigos religiosos, seja a Bíblia, o Alcorão ou outros livros sagrados. No campeonato brasileiro deste ano, com a Covid-19 pairando como um demônio a ameaçar a competição por todos os cantos, não há um texto sequer onde se basear ou uma fonte segura donde se possa beber.
Agora é tarde. Mudar o regulamento no meio da competição não é mais possível pelas leis humanas.
Resta apenas entregar o campeonato nas mãos de Deus.
Ou nas mãos do STJD.