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TJD/MG e o “Caso Gabigol”: da impossibilidade de execução de penalidade disciplinar em competição organizada pela CBF

Por Carlos Ramalho

I – DO CASO CONCRETO

Nos últimos dias, o cenário jusdesportivo mineiro e brasileiro tem sido movimentado por uma decisão da 4ª Comissão Disciplinar do Tribunal de Justiça Desportiva (TJD/MG) que, em julgamento disciplinar do atacante Gabibol e do CEO Alexandre Mattos, ambos do Cruzeiro, condenados por atos de indisciplina praticados no clássico entre Cruzeiro e Atlético, ocorrido no dia 9 de fevereiro, na sétima rodada do Campeonato Mineiro, entendeu por afastar interpretação restritiva ao art. 171 § 1º.do CBJD de forma a possibilitar o cumprimento de penas disciplinares em qualquer competição administrada pela CBF.

Na interpretação empregada e nas razões de decidir, entendeu o Presidente da Comissão Disciplinar, Auditor Dr. Tiago Lenoir, frente ao pedido da Procuradoria, que:

“O futebol profissional disputado no Campeonato Mineiro Módulo I de 2025 se organiza em uma pirâmide hierárquica, tendo a FIFA em seu topo, seguida pela CONMEBOL, CBF e, finalmente, as federações estaduais, in casu, a FMF.

Essa organização em “guarda-chuva” demonstra a interdependência entre as entidades, tanto no aspecto administrativo quanto no jurídico e na gestão de árbitros.

Os atletas são protagonistas da competição. Sua plena condição de competitividade depende do registro do contrato especial de trabalho desportivo na Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o que envolve o pagamento de taxas e procedimentos burocráticos, culminando na publicação no Boletim Informativo Diário (BID).

Considerando que um dos requisitos para a condição de jogo dos atletas nos termos do Artigo 33 do REC do Campeonato Mineiro Módulo I de 2025 é a publicação do atleta no Boletim Informativo Diário (BID) da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), não resta dúvida de que a CBF, ainda que indiretamente, organiza e participa da administração essa competição.

A ausência de desvinculação entre as entidades impõe que a execução da pena aplicada em uma competição estadual seja cumprida em todas as competições nacionais organizadas pela CBF.

Uma interpretação restritiva do artigo 171, parágrafo § 1º do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), que limitasse o cumprimento de penas disciplinares a competições organizadas apenas pela Federação Mineira de Futebol (FMF), encontra óbices significativos na estrutura organizacional do futebol brasileiro.

Restringir a execução de pena apenas as competições da FMF, geraria diversas inconsistências:

– Disparidade de tratamento: Atletas punidos em Minas Gerais poderiam competir livremente em outras competições nacionais, enquanto atletas punidos em outros estados estariam impedidos de atuar em todo o território nacional.

– Fragilidade da disciplina: A efetividade das punições seria comprometida, uma vez que atletas poderiam burlar a sanção ao migrar para competições organizadas por outras entidades.

– Desrespeito à hierarquia: A decisão desconsideraria a estrutura hierárquica do futebol, na qual a CBF exerce poder normativo, administrativo e disciplinar sobre as federações estaduais.

Portanto, uma interpretação sistemática do artigo 171, parágrafo 1º do CBJD, em consonância com os princípios da hierarquia e uniformidade do futebol brasileiro, exige que as penas disciplinares sejam cumpridas em todas as competições organizadas pela CBF.

Portanto, determino que seja oficiado o Diretor de Competições da FMF e CBF para que tomem ciência desta decisão tomem as providências cabíveis para sua execução.

Por unanimidade todos os auditores acompanharam.”

A decisão, inédita na Justiça Desportiva, além de abrir precedente vem sendo pautada por inúmeros debates, os quais ouso contribuir com as linhas que abaixo seguem.

II – DA PREVISÃO NORMATIVA EXPRESSA NO CÓDIGO BRASILEIRO DE JUSTIÇA DESPORTIVA (CBJD)

Dispõe o art. 171 do CBJD:

Art. 171. A suspensão por partida, prova ou equivalente será cumprida na mesma competição, torneio ou campeonato em que se verificou a infração.

§ 1º Quando a suspensão não puder ser cumprida na mesma competição, campeonato ou torneio em que se verificou a infração, deverá ser cumprida na partida, prova ou equivalente subsequente de competição, campeonato ou torneio realizado pela mesma entidade de administração ou, desde que requerido pelo punido e a critério do Presidente do órgão judicante, na forma de medida de interesse social. […]

Tenho que a celeuma posta, por mais meritória que seja, encontra óbice no próprio CBJD, senão vejamos:

O § 1º do art. 171 ao prever “pela mesma entidade de administração” demonstra que o legislador deixou claro os limites da competência territorial da Justiça Desportiva. Isso porque, decisões em nível estadual não podem extrapolar para competições nacionais, chanceladas pela CBF, enquanto entidade de administração.

Tal fundamento encontra amparo no disposto no § 1º do art. 1º do CBJD que prevê que ”Submetem-se a este Código, em todo o território nacional:”

I – as entidades nacionais e regionais de administração do desporto;

II – as ligas nacionais e regionais;

Ora, uma leitura conjunta do § 1º do art. 171 e do § 1º do art. 1º, Inciso I e II do CBJD deixa claro que existe distinção entre entidade de administração desportiva regional (no caso estadual) e nacional, razão pela qual, entendo que punições disciplinares aplicadas na esfera da Justiça Desportiva estadual não podem ser cumpridas em competições administradas pela CBF.

Há de se verificar ainda que o § 1º do art. 171 possibilita que a penalidade seja cumprida em “partida, prova ou equivalente subsequente de competição, campeonato ou torneio realizado pela mesma entidade de administração.”

Ou seja, se determinado atleta, por exemplo, for punido por infração de suspensão na última rodada do campeonato mineiro, como foi o caso do atacante Gabigol, e não havendo possibilidade de cumpri-la no referido campeonato em andamento, poderá fazê-lo em qualquer outro campeonato ou torneio realizado “pela mesma entidade de administração”, no caso a FMF ou ainda no campeonato de mesma natureza seguinte.

III – DA HIERARQUIA E DA ORGANIZAÇÃO EM “GUARDA-CHUVA”

Como acima transcrito, a 4ª Comissão Disciplinar fundamentou na existência do princípio da hierarquia entre as entidades esportivas, do ponto de vista administrativo, jurídico e na gestão de árbitros, o que atrairia uma organização vertical subsumida pela proteção de um “guarda-chuva”, o que demonstraria a “interdependência entre as entidades”.

Há de se recordar que o Inciso I do art. 217 da Constituição Federal prevê a autonomia das entidades desportivas, quanto a sua organização e funcionamento.

Essa previsão constitucional garante, por exemplo, que cada entidade realize sua gestão administrativa, jurídica ou de árbitros, caso assim entenda cabível não podendo sofrer qualquer intervenção das entidades hierarquicamente superiores, salvo ofensa normas estatutárias-normativas-legais.

O fato do atleta depender de registro de contrato especial de trabalho junto a CBF ou ainda da necessidade de publicação de seu nome no Boletim Informativo Diário (BID) também não teria o condão de atrair a execução de penalidade em competições administradas pela entidade de administração nacional, ou seja, pela CBF.

Vejamos, por exemplo, o que acontece com uma entidade sindical. Para que um sindicato possa operar em determinada área geográfica (limitação territorial) a entidade precisa submeter e obter seu registro junto ao Ministério da Economia, que após aprovado será publicado no Diário Oficial da União.

Ou seja, o fato de determinado representante legal da entidade sindical ser sancionado, não atrai a competência da União, por atuar, dentro de sua função administrativa, para figurar ou mesmo sancionar o representante ou mesmo a entidade sindical, resguardado o caso concreto.

É o que ocorre com a Justiça Desportiva, que conforme previsão legal, possui competência restrita a julgamento de infrações disciplinares e de campeonatos dentro de seu limite territorial, conforme previsão do art. 24 do CBJD.

Art. 24. Os órgãos da Justiça Desportiva, nos limites da jurisdição territorial de cada entidade de administração do desporto e da respectiva modalidade, têm competência para processar e julgar matérias referentes às competições desportivas disputadas e às infrações disciplinares cometidas pelas pessoas naturais ou jurídicas mencionadas no art. 1º, § 1º. (Redação dada pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

Vê-se, portanto, que não há, a meu sentir, qualquer possibilidade de interpretação sistêmica ampliativa em relação ao disposto no § 1º do art. 171 do CBJD no tocante a execução de pena imposta pela Justiça Desportiva estadual em eventos esportivos administrados pela entidade nacional desportiva.

Ouso convergir, no mérito, com a decisão exarada pela Comissão Disciplinar no sentido de que é preciso rever a legislação processual atinente ao CBJD de forma a possibilitar essa ampliação da execução da pena visando sua efetividade e seu caráter pedagógico.

Crédito imagem: Cruzeiro/Divulgação

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Carlos Ramalho – Administrador; Bacharel em Direito; Pós-Graduado MBA em Consultoria e Gestão Empresarial; Membro da Comissão Jovem da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD-Lab); Assessor da Presidência da Sociedade Brasileira de Direito Desportivo (SBDD); Auditor do Pleno do Superior Tribunal de Justiça Desportiva da Confederação Brasileira de Futebol de 7; Auditor da 2ª Comissão Disciplinar do Superior Tribunal do Voleibol; Auditor do STJD do Futebol (06/2020-06/2024); Autor de livros e Artigos. @carlosramalhocr

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