Na última sexta-feira, 8 de fevereiro, um incêndio nas dependências do Centro de Treinamentos George Helal, do Flamengo, ceifou os sonhos de dez garotos que dormiam no local. Além dos dez mortos, outros três garotos ficaram feridos. No local, dormiam jovens entre 14 e 17 anos que integravam as categorias de base do clube carioca. A tragédia só não foi maior porque, por conta da chuva que caiu no Rio de Janeiro na semana passada, os treinamentos da sexta-feira foram cancelados. Assim, muitos jovens puderam ir para casa e não precisaram dormir no Ninho do Urubu, como o CT é popularmente chamado.
O Ministério Público do Rio de Janeiro, O Ministério Público do Trabalho e outras autoridades investigam a causa do acidente. Segundo o MPT-RJ, o Flamengo inclusive já manifestou a intenção de pagar indenização às famílias das vítimas. E mesmo que ainda não tivessem assinado contratos como atletas profissionais, o Flamengo é responsável pelo que aconteceu com os dez garotos.
“A Lei Pelé trata tanto do contrato do atleta profissional quanto do atleta em formação. O contrato profissional só é feito a partir de 16 anos de idade. O contrato de formação pode ser feito a partir dos 14 anos. A vítima mais nova já tinha 14. Então, teoricamente poderiam ter esse primeiro vínculo com o clube. Mas por estarem dentro das dependências do clube, ainda que não tenha esse vínculo formal, a relação está estabelecida entre eles. O Flamengo não se isentaria de responsabilidade por não ter um contrato de formação, na minha visão”, explica Rafael Cobra, advogado especialista em Direito Desportivo.
Para Rafael, mesmo que o Flamengo não tenha contrato com os meninos, independentemente se maiores ou menores de 16 anos, um seguro de vida e contra acidentes teria que ter sido feito.
“O vínculo contratual do Rykelmo, embora a idade permitisse a profissionalização, ele ainda tinha contrato de formação esportiva com o Flamengo. Mas este contrato já prevê, na Lei Pelé, artigo 29, parágrafo sexto, inciso terceiro, a obrigatoriedade do clube na celebração do contrato de formação, da garantia da contratação de seguro de vida e acidentes pessoais em favor do atleta. Então, no mínimo, por obrigação legal, o clube, se não contratou, arcará com o valor correspondente a um seguro nesse sentido”, continuou.
Outro ponto em questão é sobre as garantias que o Ninho do Urubu tinha para poder servir de alojamento para atletas das categorias de base do rubro-negro carioca. Já há alguns anos a CBF tem concedido o Certificado de Clube Formador, um documento que atesta a qualidade dos clubes no desenvolvimento técnico de jovens atletas. Hoje são 42 clubes certificados, em um universo de aproximadamente 700 clubes no país, com documentos que podem ser renovados por anualmente ou a cada dois anos. Mas, como a própria entidade diz, ele não substitui a fiscalização do poder público.
Só que há quem acredite que a iniciativa da CBF ainda não é o suficiente para garantir a proteção dos jovens que buscam realizar o sonho de virar atleta profissional.
O consultor de desenvolvimento e inovação no futebol Eduardo Tega apresentou uma tese no programa de mestrado da Uefa de governança no esporte sobre a garantia de proteção e direitos de jovens atletas. “Tive a oportunidade de dialogar com vários chefes de responsabilidade social de vários clubes, da Uefa, da Fifa, da Concacaf e todos entendemos que esse é um trabalho fundamental. Não existe futebol sem atletas, não há futebol sem a criança gostar de futebol e ser tratada devidamente num ambiente seguro, ético. Essa foi a base do meu projeto”, analisa Tega.
De acordo com Tega, a ideia, que nasceu de um projeto conjunto com a Unicef, era contribuir para o desenvolvimento dos atletas, que esse desenvolvimento ocorresse em um ambiente seguro, saudável, acolhedor. Principalmente conscientizar os clubes e práticas e políticas em relação a formar os atletas. E apoiar os clubes na gestão e enfrentamento dos riscos. Por isso, ele questiona o papel da CBF em garantir os direitos de quem está nas categorias de base.
“O certificado do clube formador, na minha opinião, não garante a proteção de crianças e jovens. Ter o selo não é garantia de que você está ali num ambiente ético, saudável. Esses jovens e crianças, muitas vezes têm os direitos básicos prejudicados, distanciamento da família, por quem eles são treinados. [Não dá para saber] se há uma política de recrutamento desses profissionais, para saber se não há nem um pedófilo, com ficha criminal, que tenha agido em um crime contra crianças. O que eu vejo é que tem questões básicas, que deveriam ser tratadas e não são. O que é natural, porque até pouco tempo atrás não existia nada para diferenciar um clube formador de um não formador. Então é um avanço, mas não é um mecanismo que consiga garantir essas questões que acabei de dizer. A cada 3 mil crianças que querem se tornar jogador, só uma vai jogar profissionalmente. A cada 300 mil crianças, 100 jogam profissionalmente. Quinze vão ficar desempregados, 70 vão ganhar até dois salários mínimos, 10 vão ganhar entre dois e 20 salários, e só cinco vão ganhar os salários milionários, acima de 20 salários, uma realidade muito cruel. E todos os que estão envolvidos nesse processo, têm que estar muito conscientes desta responsabilidade”, apontou Tega.
Quando o assunto é o certificado emitido pela CBF, a advogada Danielle Maiolini corrobora a preocupação de Tega e vai além.
“A gente precisa começar a ver os requisitos da formação, além da formalidade da lei. A Lei Pelé e a CBF preveem uma série de obrigações que um clube precisa cumprir para ser considerado formador. Mas a forma que esses requisitos têm que ser implementados fica meio cinzenta. Eventualmente, se cumpre na formalidade o requisito da educação, mas a educação que o clube dá às vezes é muito ruim. O professor atesta a frequência, mas os meninos não vão às aulas. Pode ser que o clube cumpra o requisito, mas materialmente o menino não esteja recebendo a educação. Se ele não integrar o time como jogador profissional, quanto tempo ele perdeu de formação educacional? Não raro acontece isso com a convivência familiar. Hoje, por lei, os clubes são obrigados a disponibilizar o encontro com a família uma vez por ano, mas que tipo de impacto isso traz para a criança? Há uma infinidade de questões que precisam ser estudadas e que precisam ser olhadas com mais carinho pelos clubes e pelas entidades de organização do esporte”, finaliza Danielle.
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Foto: Tomaz Silva/ Agência Brasil