*Leonardo Garcia[1]
O futebol é uma paixão nacional no Brasil, mas também carrega em si um reflexo das profundas desigualdades sociais que marcam o país. Nas categorias de base, onde a grande maioria dos atletas vem de famílias em situação de vulnerabilidade, o esporte desponta como um dos raros caminhos para a tão almejada ascensão social.
Contudo, a realidade é dura: estudos indicam que menos de 1% desses jovens conseguem alcançar o nível profissional de forma sustentável, evidenciando que o atual sistema de formação negligencia a preparação dos outros 99%.
Ao priorizar exclusivamente o desenvolvimento técnico, sem oferecer uma educação escolar de qualidade, o modelo vigente perpetua a exclusão social e reduz as perspectivas de futuro da imensa maioria dos jovens que depositam seus sonhos no futebol.
Essa estrutura falha reflete não apenas a ausência de políticas públicas eficientes, mas também a falta de compromisso dos clubes formadores em integrar o desenvolvimento esportivo com o educacional, limitando drasticamente o potencial transformador que o futebol poderia ter na vida desses jovens.
O futebol poderia e deveria ser mais do que um sonho distante. Seu potencial como ferramenta de inclusão social é inegável, especialmente quando associado a uma formação educacional de qualidade que promova o desenvolvimento integral dos jovens atletas.
No entanto, a realidade prática é alarmante. As estruturas educacionais destinadas aos jogadores das categorias de base são frequentemente precárias e desarticuladas em relação às demandas do esporte. Muitos desses jovens enfrentam uma rotina em que os treinos e competições coincidem com o horário escolar, resultando em faltas recorrentes às aulas, perda de conteúdo essencial e, em casos mais graves, abandono escolar precoce.
As consequências desse cenário são devastadoras, tanto para os indivíduos quanto para a sociedade. Jovens promissores que não alcançam o profissionalismo deixam as categorias de base sem uma formação acadêmica sólida, ficando com poucas opções reais de inserção no mercado de trabalho. Isso perpetua o ciclo de exclusão social, transformando o futebol, muitas vezes, em mais uma via de frustração para aqueles que dele esperavam esperança.
Para reverter esse quadro, é imprescindível que o sistema esportivo brasileiro adote um modelo integrado, que veja na educação não um elemento secundário, mas um pilar essencial. Tal modelo deve assegurar que a formação esportiva e acadêmica caminhem juntas, promovendo não apenas a capacitação técnica, mas também o desenvolvimento intelectual e social dos atletas, garantindo-lhes alternativas dignas para o futuro, dentro ou fora do esporte.
Diversos países apresentam modelos inspiradores que integram a formação esportiva de jovens atletas com uma educação acadêmica de qualidade. Nos Estados Unidos, o esporte universitário é uma das principais vias para o desenvolvimento de atletas. O sistema permite que os jovens conciliem treinamento de alto nível com uma formação acadêmica de excelência, garantindo que, mesmo aqueles que não sigam carreira no esporte, obtenham diplomas que ampliam suas oportunidades de vida.
Na Europa, a integração entre esporte e educação também é evidente. Em países como Alemanha, França e Portugal, os treinos das categorias de base respeitam rigorosamente o período escolar. Em Portugal, por exemplo, o governo oferece incentivos para que jovens atletas possam contar com aulas particulares ou programas educacionais personalizados, adaptados às suas rotinas de treinos e competições. Esse suporte educacional visa assegurar que a formação acadêmica não seja prejudicada, mesmo diante de uma agenda esportiva exigente.
Além disso, competições e torneios são frequentemente programados para as férias escolares, reforçando o compromisso com a continuidade educacional. Esses modelos reconhecem a educação como um pilar essencial para o desenvolvimento integral dos jovens, demonstrando que esporte e aprendizado podem caminhar juntos de forma harmoniosa e eficaz.
No Brasil, a ausência de regulamentação específica para conciliar esporte e educação é um dos principais entraves para o desenvolvimento integral dos jovens atletas nas categorias de base. Muitos clubes, mesmo aqueles com estruturas reconhecidas, limitam-se a oferecer vagas em escolas públicas frequentemente marcadas por infraestrutura precária e baixa qualidade de ensino. Isso resulta em uma negligência institucional que compromete não apenas o futuro esportivo dos jovens, mas também suas oportunidades enquanto cidadãos. O esporte, que poderia ser uma ferramenta de inclusão e ascensão social, torna-se mais um reflexo das desigualdades estruturais do país.
Uma solução urgente seria estabelecer a obrigatoriedade de parcerias entre clubes formadores e instituições de ensino particulares, garantindo que os atletas recebam uma educação de qualidade, com currículos adaptados às suas rotinas de treino e competições. Essa medida não apenas asseguraria a continuidade educacional dos atletas, mas também poderia servir de estímulo para que esses jovens enxerguem a educação como um caminho viável e transformador, mesmo fora do futebol.
A Confederação Brasileira de Futebol (CBF), como principal entidade organizadora do futebol no país, tem um papel fundamental na reestruturação desse modelo. Uma medida concreta seria vincular a certificação de “Clube Formador” à implementação de programas educacionais robustos. Esses programas poderiam incluir:
- Parcerias obrigatórias com escolas de excelência reconhecida, seja no formato presencial ou híbrido, garantindo um ensino compatível com as melhores práticas pedagógicas.
- Monitoramento e avaliação contínuos da performance educacional dos atletas, com relatórios periódicos enviados à CBF, assegurando a eficácia dos programas.
- Inclusão de cláusulas que determinem horários de treino fora do período escolar e o agendamento de torneios e viagens em períodos de férias letivas, similar ao que ocorre em diversos países europeus.
Ao agir dessa maneira, a CBF não estaria apenas promovendo um futebol mais organizado e ético, mas também assumindo um papel de liderança social, transformando a experiência do futebol de base em uma oportunidade real de desenvolvimento humano. A responsabilidade da CBF vai além da formação de atletas; é preciso formar cidadãos preparados para a vida, seja ela no futebol ou em outras áreas. O impacto social positivo de tal iniciativa poderia beneficiar não apenas os jovens, mas toda a sociedade, ao transformar o esporte em um verdadeiro agente de inclusão e mobilidade social.
O Governo Federal, através dos Ministérios do Esporte e da Educação, por sua vez, deve complementar essas medidas com regulamentações e políticas públicas abrangentes. A criação de uma legislação nacional que obrigue os clubes a respeitarem os horários escolares nos treinos e torneios seria um passo importante para alinhar o Brasil a modelos bem-sucedidos, como os de Portugal e outros países europeus.
Além disso, o governo pode implementar programas de incentivo educacional voltados para atletas em situação de vulnerabilidade social, incluindo bolsas de estudo, acesso a aulas particulares ou reforço escolar, transporte e alimentação. Essas iniciativas não apenas garantiriam que os jovens possam continuar seus estudos, mas também forneceriam um suporte essencial para famílias que muitas vezes enfrentam dificuldades econômicas ao longo da formação esportiva de seus filhos.
O futebol é, sem dúvida, um dos maiores símbolos culturais e sociais do Brasil. Mas ele não pode mais ser um sonho que apenas 1% conseguem viver plenamente, enquanto os outros 99% são deixados para trás. A transformação desse cenário depende de escolhas claras e compromissos sólidos. É hora de reconhecer que a bola que rola nos campos de base deve ser um instrumento para lapidar não apenas talentos esportivos, mas também futuros cidadãos, preparados para vencer dentro e fora das quatro linhas.
Ao negligenciarmos a educação desses jovens, estamos não apenas apagando sonhos individuais, mas também comprometendo o futuro de uma geração que poderia liderar mudanças profundas na sociedade. Um modelo que integre esporte e educação é mais do que necessário: é urgente. Ele representaria uma chance real de quebrar o ciclo de exclusão social, transformando o futebol em uma plataforma de inclusão, dignidade e oportunidades.
O Brasil precisa decidir se quer continuar aplaudindo gols marcados por poucos ou se está pronto para celebrar o sucesso de muitos. A escolha está em nossas mãos. E não há vitória maior do que fazer da paixão pelo futebol um caminho para a justiça social e a transformação de vidas.
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[1] Procurador do Estado do Espírito Santo, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP, Pós-graduado em Direito Desportivo e auditor do TJD/ES. @professorleonardogarcia @leiseesportes