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Um estranho olhar

Por Marcelo Azevedo

Vivi nos últimos dias um dilema quase existencial ao lidar com o desafiador tema da Sociedade Anônima do Futebol, ou SAF para os mais íntimos, afinal como ajustar o prisma do meu olhar para acomodar o brilho de uma paixão (quase) cega pelo time que torço ao lado de manter um essencial distanciamento crítico que todo observador analítico deve ter.

Confesso, não foi nada fácil. Comecemos então pela parte mais poética.

Ao contrário do que muitos imaginam, não foi exatamente a compra da SAF do Botafogo pelo americano John Textor que nos fez gritar enlouquecidos como se estivéssemos diante da cena do gol de um título alvinegro. Não, o que todo torcedor botafoguense comemorava naquela noite chuvosa do dia 14 de janeiro de 2022 foi a queda simbólica do nosso “muro de Berlim”, o rompimento com um modelo de gestão anacrônico e nocivo com o qual não desejávamos mais renovar pactos mantidos pela crença.

Então foi por isso que ali, do lado de fora dos muros da histórica sede de General Severiano, a torcida vibrou não pelo investidor americano, mas para avisar que mesmo a incerteza do que virá diante de uma relação com o desconhecido é um risco que ela topa viver desde que isso a liberte de um passado que praticamente condenou o clube à irrelevância esportiva.

Quando a torcida invadiu o salão nobre do clube, num ato incontrolável que deixou atônitos os que de lá faziam suas falas pomposas, ela apenas tomou de volta o controle simbólico daquilo que lhe pertencia. Ali, restou demonstrado a quem quer que fosse, aos antigos donos de fato e aos atuais donos de direito, que não há vida possível num clube de futebol, se não for ao lado de sua torcida. Neste lugar, nenhum clube morrerá, porque uma torcida sempre será a última barreira que a finitude precisará transpor para alcançar um clube.

Mas a cada instante que aquilo era registrado na minha mente, eu buscava minimamente racionalizar o significado e os efeitos do que estava acontecendo. Afinal, após a publicação da Lei nº 14.193 de 6 de agosto de 2021 em que se criou a figura da SAF, os primeiros clubes tradicionais do futebol brasileiro estavam tomando a decisão de optar por uma nova modalidade jurídica de constituição. E não passava despercebido o fato de que se o estado brasileiro se mobilizou para intervir e legislar o futebol a fim de regulamentá-lo, é porque havia nisso um reconhecimento ao tamanho que este esporte tem, não apenas como uma alegoria cultural do seu povo, mas notadamente como uma indústria relevante na matriz econômica da nação, capaz de gerar impostos, empregos e sim, também ganhos e lucros. É preciso então definitivamente profissionalizar este setor.

É bem verdade que clubes de futebol já podiam antes se transformar em empresa no Brasil. A questão é que se antes não havia impedimento legal para isso, muito menos havia incentivos, especialmente os tributários. Quer dizer, em parte, porque já houve no passado recente um movimento do estado brasileiro para criar vantagens fiscais em busca da profissionalização do futebol, com a criação do PROFUT. Não deu o resultado esperado, como sabemos.

Tá vendo como tudo isso é confuso e precisa ser explicado?

O que ocorre agora é que a lei da SAF deu respaldo legal para que clubes brasileiros possam aderir a um modelo societário que trata com distinção lucro e paixão, pois ainda que no ambiente do futebol um necessariamente se alimente do outro, não podemos perder nunca de vista que uma sociedade empresária tem como meta lucrar e um clube de futebol aspira conquistar vitórias que alimentam a paixão do seu torcedor.

Mas era preciso virar uma SAF para tudo isso acontecer? Enquanto associações, os clubes não poderiam dar lucro? As respostas a estas duas perguntas são não e sim. Não, não é preciso que todo clube vire uma SAF para que ele tenha uma gestão profissional, aliás, muitos sequer trilharão este caminho. Ao menos, não neste primeiro momento. E sim, claro que sim, o fato das associações serem entidades sem fins lucrativos, não significa dizer que elas devam ter fins de prejuízo. Muito pelo contrário, é saudável a busca do lucro, o que significa numa linguagem simples, arrecadar mais e melhor do que você gasta, equilibrando ao longo do tempo essa balança a seu favor. A questão é que numa associação, o que é conhecido no mundo empresarial como lucro, é mais correto chamar de superávit, sendo mandatório que tais valores sejam obrigatoriamente voltados para ela própria na forma de novos investimentos nos seus ativos. Em hipótese alguma podem ser distribuídos.

Numa SAF, dado que existe um dono investidor, parte significativa dos lucros obtidos passam a ser dele. É neste ponto que ele recupera os investimentos que fez. É daí que ele realiza a vantagem pelo risco de comprar uma instituição à beira da falência.

Nunca é demais lembrar que este movimento que agora acontece no Brasil é mais uma vez tardio em relação aos movimentos econômicos pelo mundo, mais especificamente na Europa. Além disso, mais uma vez também parecemos agir em descompasso, já que enquanto indústria ainda não demos passos estruturantes mais importantes, como por exemplo, a organização de uma liga nacional que possa vender coletivamente os seus direitos de mídia.

É aqui que voltamos ao hoje festejado John Textor.

É da maximização de ganhos de uma liga mais bem organizada e, sobretudo, mais bem vendida, que Textor espera extrair os ganhos que tornarão viáveis o seu plano estratégico de multi-club ownership, ou no bom português, Multipropriedade de Clubes. Portanto, se há alguma expectativa de minha parte na vinda de um personagem como ele, menos tem a ver com o seu capital, mas mais em como a sua experiência empresarial pode trazer uma inteligência que permita elevar a qualidade do debate na estrutura do futebol brasileiro, provocando, quem sabe, um crescimento exponencial de toda a indústria, de tal forma que force os clubes a resolverem definitivamente seus modelos gerenciais, e não apenas as suas estruturas societárias.

O que vimos dar certo até aqui foi apenas a estruturação da SAF de dois clubes tradicionais e a identificação de investidores interessados na compra de parte significativa de suas ações. Agora é preciso que essas empresas que foram criadas em forma de SAF alcancem o sucesso esportivo e, acreditem, não menos importante, o sucesso econômico. Sem isso, o modelo não irá se sustentar.

Como torcedor, festejei a adesão do meu clube à lei e a constituição da nossa SAF. Após o resultado da votação do conselho que aprovou o modelo, chorei ao lembrar do meu velho, desejando que estivéssemos juntos pulando os muros de General Severiano. Neste novo caminho que agora começamos a trilhar, mais do que nunca, que a estrela solitária nos conduza.

Como observador, não posso me permitir criar falsas expectativas a não ser torcer para que a SAF do Botafogo seja mesmo um marco divisório que possa representar o começo de novos tempos para o meu clube e quiçá,  do futebol brasileiro. Cauteloso, seguirei colaborando para que a torcida entenda que nenhuma empresa recupera em 1 ano prejuízos de décadas anteriores, em qualquer que seja o segmento. E que, para dificultar ainda mais a caminhada que estamos começando, no Brasil muitas empresas quebram antes de completar 5 anos.

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Marcelo Azevedo é formado em Administração de Empresas com MBA em Gestão de Negócios. Publicitário por adoção, atua há mais de 30 anos liderando áreas de gestão e finanças. É convicto da força que o ecossistema do futebol pode produzir no seu entorno.  Torcedor raiz, é um amante do jogo bem jogado, da boa disputa, mas gostar, gostar mesmo, ele gosta é do Botafogo, até mais do que do futebol. É sócio do Futebol S/A.

 

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