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Um novo escândalo em preto e branco no futebol italiano

Enquanto os olhos do mundo estão voltados para a Copa do Mundo do Catar e o futebol no âmbito de clubes está paralisado, um novo escândalo esportivo eclodiu na Itália, com o condão de causar um impacto considerável em um dos maiores centros futebolísticos do planeta e em seu clube mais popular, a Juventus.

Nesse contexto, não podemos olvidar que não é a primeira vez que o clube e o futebol transalpino ganham os holofotes por fatores estranhos ao futebol ou que, ao menos, deveriam ser. No ano de 2006, veio à tona o caso que seria conhecido como Calciopoli, em que dirigentes de algumas equipes, entre elas a Lazio, o Milan, a Juventus, Fiorentina e os chefes da arbitragem, juntamente com alguns árbitros, se comunicavam constantemente, com direito a troca de presentes, para que tivessem uma atuação favorável da arbitragem dentro de campo, bem como influenciar na escolha dos árbitros para as suas partidas.

As investigações, que contaram com escutas telefônicas e vasto acervo probatório, culminaram na punição à diversos dirigentes de clubes e da Federação, o que incluiu prisão, assim como a perda do título de dois scudetti da Juventus em 2004/05 e 2005/06, sendo que o primeiro ficou sem dono e o segundo foi herdado pela Inter de Milão, além do seu rebaixamento e, simultaneamente, a perda de pontos para outras equipes.

Quase duas décadas depois, as proporções parecem ser as mesmas de antes, mas o tema envolve muito mais a parte financeira do que a influência direta nos resultados das partidas, como foi no caso de corrupção e manipulação da Calciopoli.

Sendo assim, a partir de agora, passaremos a tratar o caso concreto, traçando uma linha cronológica que, ainda que não exaustiva, será direta para que se possa entender, de maneira mais clara, o escândalo, que envolve temas muito complexos.

Em novembro do ano passado, a Promotoria da Federação Italiana de Futebol (FIGC) abriu um inquérito sobre 62 negociações de jogadores de futebol no país realizadas durante 2019 e 2021. O principal investigado era a Juventus, com 42 transferências sob suspeita, em especial, a troca do meia Miralem Pjanic pelo brasileiro Arthur Melo, que na época pertencia ao Barcelona.

O órgão abriu um processo sobre as “mais-valias-suspeitas” em diversas transferências, após ter recebido uma documentação da Covisoc – uma comissão que fiscaliza as equipes profissionais no país. O caso nasce a partir da negociação de alguns jogadores, onde houve suspeita de que essas transações foram feitas para corrigir ou maquiar o balanço financeiro de alguns clubes.

O mecanismo, principalmente oriundo da troca de jogadores, requer um registro um valor de saída (receita de venda) e a baixa do registro (custo de saída). Os clubes faziam trocas que contabilmente geram lucro, mas financeiramente não significam movimentação financeira.

Ocorre que, entretanto, a resolução do caso era de alta complexidade, tendo em vista a dificuldade em se determinar o real preço de mercado de um jogador, pois não há um critério contábil, muito menos científico, que possa estabelecer, a priori, qual é o valor correto nessas trocas entre clubes.

Some-se a isso, o fato de a Juventus, principal acusada e protagonista do caso, ser a única sociedade italiana a cotizar na bolsa de valores. Com isso, essa suposta falsa informação afetaria todo o mercado financeiro, subindo artificialmente os valores das ações e prejudicando os interessados em adquiri-las, sobretudo a longo prazo.

Desse modo, o Ministério Público Italiano[1] solicitou a suspensão e aplicação de multa a mais de 60 dirigentes e aos próprios clubes perante ao Tribunal da Federação Italiana (FIGC), entre eles os presidentes da Juventus e do Napoli, principalmente por terem inflado as demonstrações financeiras dos clubes através da introdução de valores considerados acima do mercado de jogadores.

Para tanto, foram avaliados os seguintes critérios para se aproximar ao valor de mercado dos respectivos jogadores: a) idade; b) posição; c) carreira esportiva (categoria de base de origem, que é relevante para jovens jogadores; estreia em times de escalões superiores, observando a divisão frequentada; os resultados alcançados e os títulos obtidos pelas equipes de estreia em competições oficiais; a eventual convocação nas seleções de base; gols marcados; assistências e, para goleiros, gols sofridos; bem como quaisquer lesões de certa gravidade sofridas e o número de participações em cada competição; d) histórico econômico das transferências, tendo em vista também as condições contratuais estabelecidas nas transferências anteriores; e) Contratos de trabalho desportivo, tendo também em conta a duração, a remuneração prevista.

A propósito, a possível maquiagem no balanço patrimonial dos clubes, com uma demonstração de um ganho de capital suspeito impulsionado por um aumento fictício do valor de um jogador em uma transação de troca de jogadores, não chega a ser inédita no futebol italiano. No ano de 2018, houve em um escândalo similar nas contas de dois clubes (Chievo e Cesena), que acabaram punidos com a perda de pontos.

Ressalte-se que cada entidade deve preencher vários requisitos econômicos para poder obter uma licença e, consequentemente, disputar as competições nacionais, bem como internacionais.

Posto isso, muitos leitores devem estar se perguntando: e a parte esportiva? Há algum tipo de desdobramento? Como podemos associar essa possível maquiagem das demonstrações financeiras ao esporte? Tudo isso, se resume ao fair play financeiro.

Após a crescente endividamento dos clubes, marcados por gestões amadoras e danosas, bem a preocupação existente com a sustentabilidade e longevidade da modalidade, foram implementados o conceito e as regras de fair play financeiro da UEFA, entidade organizadora do futebol europeu. Isso tudo passou a ser replicado também em âmbito nacional em diversas ligas, que criaram critérios baseando-se no sistema europeu, algumas, inclusive, mais rigorosas, como foi a de Laliga, na Espanha.

Nesse os principais objetivos da entidade organizadora do futebol europeu eram: i) introduzir mais disciplina e racionalidade nas finanças dos clubes, ii) encorajar os clubes a competir apenas com valores das suas receitas, iii) com as finanças saneadas, possibilitar investimentos no futebol de base e em sua estrutura, garantindo a viabilidade a longo prazo do futebol europeu, e iv) assegurar que as equipes pudessem resolver os seus problemas financeiros, satisfazendo os seus credores.

Partindo disso, ressalte-se que cada equipe deve preencher vários requisitos econômicos estabelecidos pela UEFA ou pela própria Liga para poder obter uma licença e, consequentemente, disputar as competições nacionais, bem como internacionais. A violação das regras implica, entre outros fatores, na não concessão de licenças, multas, perda de pontos e até rebaixamento.

Em 2016, totalizando 5 anos quando do início da fiscalização, a UEFA estimou que as perdas foram reduzidas em aproximadamente 80 por cento entre as equipes espalhadas por toda o continente. Saíram de 1,7 bilhões de euros para 286 milhões, o que demonstrava, por si só, a eficácia de medida. Isso tudo passou a ser replicado também em âmbito nacional em diversas ligas, que criaram critérios baseando-se no sistema europeu, algumas, inclusive, mais rigorosas, como foi a de Laliga, na Espanha.

Nesse ano, a Juventus assinou um acordo com a UEFA, devido a inadequação ao fair play financeiro entre os anos de 2018/22, devendo pagar uma multa de 23 milhões de euros, que poderá ser reduzida para 3,4 milhões de euros se as contas estiverem em ordem até 2024/25, e concordando em limitar o elenco e o mercado de transferências. Contudo, se no futuro fosse constatado que as violações eram particularmente graves, o acordo atual seria cancelado e novas sanções poderiam ser impostas.

Estabelecido a ligação entre a suposta maquiagem nas demonstrações financeiras e a violação às regras do fair play financeiro, retorna-se ao caso concreto. Após a denúncia do Ministério Público, o Tribunal da FIGC[2] resolveu absolver todos os dirigentes dos clubes, bem como as próprias entidades de prática desportiva.

A fundamentação foi de que, ainda que os critérios do MP fossem bem sólidos, o órgão acusatório não conseguiu atribuir um valor econômico ou uma porcentagem de importância a cada um deles para se chegar a um valor definitivo do direito econômico do atleta, assim como o método não era uma unanimidade para todos, podendo existir outros para avaliar os valores.

Ademais, pontuam que o acordo sobre a compra dos direitos econômicos dos jogadores está intrinsicamente ligado ao livre mercado, que não pode ser guiado por um método de avaliação (seja ele qual for) que identifique e determine o valor correto de cada venda individual. Até porque, neste caso, o livre mercado não existiria mais para a fixação de contraprestações de transferência substancialmente predeterminadas por aquele método de avaliação.

Dessa forma, não se poderia alcançar a certeza necessária através desse preceito, não podendo se constituir assim em um ilícito disciplinar, para fins de punição desportiva aos dirigentes e aos próprios clubes. Entretanto, nos meses subsequentes, com a adoção de outras diligencias, escutas telefônicas e aprofundamento das investigações pelo Ministério Público, apareceram novos fatores, o que levou ao requerimento de reabertura do processo para 12 dirigentes e ex dirigentes da Juventus.

Nesse contexto, as novas acusações trouxeram novos elementos, além de aprofundar os já demonstrados anteriormente, São quatro os crimes possíveis: falsas comunicações corporativas, manipulação de mercado, obstrução ao trabalho dos órgãos fiscalizadores e notas fiscais falsas de transações inexistentes.

Segundo a acusação, o clube recorreu a “manobras corretivas” com o objetivo de “aliviar” os balanços e assim permitir a “permanência no mercado” sem a perda dos jogadores importantes. As medidas corretivas incriminadas teriam sido de dois tipos: as mais-valias “artificiais” ligadas ao mercado de transferências, e, por outro lado, as duas “medidas salariais” realizadas na época 2019/20 e 2020/21, diante da emergência e crise gerada pela pandemia, com a renúncia pública de alguns jogadores a alguns meses de salário, enquanto que existia um acordo privado entre as partes, que garantia o pagamento mesmo em caso de eventual transferência.

Esse último fator teve algumas particularidades e foi dividido em duas partes, o que teria envolvido uma das maiores estrelas da história do futebol, o português Cristiano Ronaldo. A primeira manobra foi ainda em 2020, quando o futebol estava parado devido à pandemia e depois, quando retomado, com portões fechados, portanto, sem receitas oriundas do match day, colocando os clubes em graves dificuldades financeiras[3].

Em março de 2020, a Juventus emitiu um comunicado de imprensa no qual anunciava que teria chegado a um acordo com os jogadores e o treinador da quanto aos seus vencimentos pelo restante de dita temporada. O acordo previa a redução das remunerações de março, abril, maio e junho daquele ano.

Diante disso, o resultado seria que os efeitos financeiros decorrentes da avença alcançada seriam positivos, com a economia de cerca de 90 milhões de euros no exercício de 2019/2020, o que fora confirmado na demonstração financeira do clube.

Entretanto, os documentos obtidos durante a investigação mostram que o presidente Agnelli e o capitão da época Giorgio Chiellini, que não está entre os suspeitos, haviam assinado um acordo que previa o pagamento regular de um desses quatro salários naquele ano e dos outros três na temporada subsequente. O MP, logo, alega que esses ganhos relatados eram fictícios, pois os pagamentos teriam ocorrido de maneira oculta.

A segunda operação ocorreu da seguinte forma: com a extensão dos efeitos da pandemia também para a temporada de 2020/2021, com jogos à porta fechada até maio de 2021 e, posteriormente, com estádios com capacidade reduzida durante muito tempo, a Juventus ainda teria o problema de adiar ou diminuir outros quatro meses de salário, mas desta vez os jogadores recusaram o acordo.

A solução, segundo o MP, consta num documento (arquivado na Liga e somente por isso registado nas contas) em que os jogadores aceitam a redução do salário e um segundo acordo (arquivado em julho, portanto apto a registado no exercício de balanço da outra temporada) com o qual o clube se compromete a pagar os vencimentos nas temporadas seguintes em caso de permanência do atleta.

Ato contínuo, haveria um terceiro documento, um acordo particular no qual com a qual o clube garantia a todos o pagamento dos salários atrasados, mesmo em caso de transferência. Este último documento teria sido escondido no escritório do chefe da área jurídica do clube. Entre os jogadores envolvidos em ambas as “manobras salariais” está Cristiano Ronaldo,

O acordo ocultado do craque português nada mais é do que o documento que atesta o crédito do português com a Juventus. Nos documentos apreendidos pelas forças policiais surgem os valores relativos à “manobra salarial” das temporadas de 2019/20 e 2020/21, que totalizam quase 30 milhões de euros brutos, o que giraria em torno de 20 milhões de euros líquidos.

Por esta razão, Cristiano Ronaldo, através dos seus advogados, pediu os autos do julgamento e as transcrições das escutas telefónicas em que está envolvido, mas, neste momento, o Ministério Público negou. O atacante ainda estuda maneiras e a pertinência de ajuizar uma ação contra a Juventus em meio a essa turbulência[4].

Por conseguinte, as consequências desse escândalo parecem ter afetado os bastidores do clube. Na semana passada, todos os membros do conselho de administração da Juventus, incluindo o presidente Andrea Agnelli e o ex-jogador Pavel Nedved (vice), pediram demissão.

No âmbito desportivo, a UEFA[5], através do órgão competente (Primeira Câmara do Órgão de Controle Financeiro de Clubes)  espera o desenrolar do processo na Itália para decidir o que será feito com o acordo estabelecido entre as partes, bem como, em caso de confirmação das acusações, impor sanções mais graves ao clube italiano.

Ainda há de se esperar a evolução do processo, que promete se estender a outras equipes, para se extrair conclusões mais precisas. Decerto, o fato é que, o mundo do esporte está cada vez mais exigente quanto à transparência, o fair play financeiro, de maneira a manter a integridade e equilíbrio das competições. É um caminho sem volta!

Crédito imagem: Juventus

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[1] Ministério Público da Itália pede gancho pesado para dirigentes de Juventus e Napoli | futebol italiano | ge (globo.com)  – última consulta: 07.12.2022

[2] Decisão FIGC – sez-disciplinare-decisione-n-128-tfn-del-2242022.pdf (figc.it) – – última consulta: 07.12.2022

[3] Inchiesta Juventus: cosa è successo, perché e cosa rischia il club- Corriere.it – última consulta: 07.12.2022

[4] Serie A: Cristiano Ronaldo exige a la Juventus 19,9 millones de euros | Marca – última consulta: 07.12.2022

[5] https://www.espn.com.br/futebol/italiano/artigo/_/id/11310604/juventus-e-alvo-de-investigacao-da-uefa-e-pode-ver-crise-interna-explodir-de-vez – última consulta: 07.12.2022

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