Não me lembro de ter visto com destaque a notícia de que a brasileira Maria Joaquina, de 13 anos, ganhou a medalha de prata na categoria júnior do Mundial de Patinação Artística. Uma pena, até porque a conquista dessa paranaense representa não só uma grande vitória pessoal, mas também o direito de todos de serem quem realmente são.
No dia 30 de setembro, no Campeonato Mundial de Patinação Artística, em Assunção, no Paraguai, Maria não só superava adversárias do mundo inteiro, como o preconceito e as dores da vida que se apresentavam de maneira precoce. E, mais, também mostrava o lugar que o esporte precisa sempre estar: ao lado da proteção de direitos humanos.
Maria Joaquina é vice-campeã mundial e uma atleta transgênero.
“Terminei em segundo! Queria ter dado mais, chorei (sou ariana). Mas aí lembrei que tenho 5 anos ainda na categoria e é meu Primeiro Mundial! Tô Feliz!”, escreveu ela no Instagram – que, apesar de jovem, já enfrentou muitos obstáculos na carreira.
Histórico de barreiras
Maria sempre soube que era uma menina. Adotada aos 8 anos, pouco tempo depois pedia aos pais para usar as roupas da irmã. Como os pais têm uma escola de patinação, ela começou a praticar e a se destacar. E, também, a sofrer desde cedo com o preconceito.
Com nove anos, a primeira grande dor. Durante uma apresentação oficial da modalidade na categoria feminina, os organizadores do evento anunciaram o nome masculino com o qual a menina não se identificava, apesar dos pedidos da família e da psicóloga da jovem para que fosse apresentada como Maria.
Mesmo assim, Maria foi superando adversárias e preconceito.
No início de 2020, após se classificar em segundo lugar no campeonato brasileiro (colocação que a qualificava para representar o Brasil na competição), Maria foi impedida de participar do campeonato Sul-americano que seria disputado em Joinville, Santa Catarina. A Confederação alegou que somente atletas que portassem documentos de identidade iguais ao gênero do competidor poderiam ser aceitos.
Um dos argumentos da organizadora do evento era o de que atletas transexuais femininas teriam níveis mais altos de testosterona, o que lhes garantiria vantagem competitiva.
A Confederação disse que as inscrições tinham como base o sexo de nascimento. E encerrou comunicado dizendo: “tal conceito não é passível de contestação”.
Eles procuraram a Federação Internacional, a World Skate – órgão máximo da patinação artística. A resposta foi de que a “Federação tem por obrigação aceitar atleta transgênero”, mas em seguida diz que “além de taxas de testosterona, há outras normas que precisam ser aceitas”.
Desde 2016, o Comitê Olímpico Internacional determinou uma nova posição em relação a atletas trans em competições oficiais. Homens trans sem restrição e mulheres trans precisam apenas ter quantidade de testosterona controlada para competir no feminino. A quantidade determinada pela ciência é de 10 nanomol por litro do hormônio no sangue. A necessidade de redesignação do sexo foi derrubada.
Maria Joaquina ainda é uma criança. Ela é acompanhada frequentemente por um endocrinologista, que faz as medições das taxas hormonais. Maria tem 0,5 nmol/l de testosterona no sangue. Para se ter uma ideia, a irmã mais nova dela, Talia, tem 0,7 nmol/l. Maria também recebe atendimento há 3 anos no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital de Clínicas de São Paulo.
Ou seja, regras internas das entidades de administração da patinação esquecendo direitos fundamentais e as próprias regras do Comitê Olímpico Internacional.
Os pais não desistiram. E quando o esporte se afasta do direito, ainda resta o caminho da Justiça Comum.
Uma briga na Justiça
O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça.
O ministro Napoleão Maia Nunes Junior, do Superior Tribunal de Justiça, reconheceu a competência da 2ª Vara Cível de São Paulo para analisar o caso de Maria, impedida de participar do campeonato de patinação. Com isso, valeu a decisão da Justiça comum de autorizar a participação na disputa.
Segundo o ministro, o juiz estadual havia concedido a liminar para ela competir e o juízo federal, não. Para o ministro, as entidades desportivas em análise não se encaixam nos conceitos de ente público federal ou organismo internacional, já que são entidades privadas de esporte.
“Motivo pelo qual, de acordo com a interpretação consolidada pela corte, não é de se reconhecer a restritiva competência da Justiça Federal ao processamento e julgamento da ação de origem. A competência, a uma primeira vista, é da Justiça Estadual, que, por sinal, havia deferido a medida liminar em favor da parte autora”, diz.
Com a vitória na Justiça, Maria entrou no ringue e pode representar o Brasil no Sul-americano.
Um pouco depois, com 12 anos, Maria teve uma outra grande vitória.
A Justiça julgou procedente o pedido de retificação do nome e gênero de Maria Joaquina Cavalcanti Reikda. Com a decisão, foi emitido mandado ao Cartório para que seja retificado o assento de nascimento de Maria Joaquina.
Agora, aos 13, o vice-campeonato mundial. Ela terminou a competição na atrás da italiana Sofia Paronetto, campeã, e com a patinadora Giuliana Scamarda, da Argentina, na terceira colocação.
Uma conquista pessoal gigante e mais um aprendizado para o esporte.
Grande debate do movimento esportivo
A participação de transgêneros no esporte tem sido um dos maiores debates do movimento esportivo nas últimas décadas. Um diálogo que envolve a necessária proteção de direitos humanos, o importante equilíbrio esportivo e a ciência.
É preciso lembrar de vários casos fundamentais ao longo da história, que levaram a discussões jurídicas, pesquisas científicas, reflexões e debates. E esses grandes encontros acabaram provocando um novo entendimento do Comitê Olímpico Internacional sobre o tema, que tem mudado o esporte e gerado novas e grandes discussões.
A não discriminação é um direito consagrado em todas as cartas mundiais de Direitos Humanos, reconhecidas por muitos dos países filiados ao movimento olímpico, que também prega a bandeira da igualdade. Está na Carta Olímpica (espécie de Constituição do movimento olímpico) nos princípios 2 e 4 do Olimpismo, que é condenada qualquer discriminação dentro do esporte.
E claro que o direito a ciência e a proteção de todos têm sido considerados nessa revolução recente que vive o esporte.
Confrontados com casos como o de Maria, o que se percebe na Lex Sportiva é que os tribunais e o próprio Tribunal Arbitral do Esporte (instância maior da cadeia jurídica do esporte) têm permitido um diálogo com outras ordens jurídicas, principalmente quando a questão versa sobre direitos humanos.
A verdade é que o esporte tem autonomia para criar regras de elegibilidade, mas não pode esquecer direitos fundamentais. Autonomia não é sinônimo de independência.
E se – se, se, se – o esporte não encontrar caminho em que a necessária proteção de direitos humanos conviva com o importante princípio da igualdade competitiva, me parece claro que ele só tem um caminho a tomar.
Afinal, esporte não se separa jamais da proteção da igualdade e do combate ao preconceito.
Esporte inclui, jamais afasta. Nem uma criança, nem ninguém.
Crédito imagem: Reprodução
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