Um processo de seleção para um programa de trainne de uma rede varejista brasileira tem muito a ensinar ao movimento esportivo no combate ao racismo. É que ele ataca um dos pontos que ajudam a alimentar o problema, a falta de representatividade negra em postos de comando, na sociedade em geral e no esporte.
A seleção para o programa de trainee da Magazine Luiza, que só aceitará negros, provocou neste ano que esta terminando uma grande polêmica nas redes sociais e reavivou uma discussão fundamental no combate ao racismo, a falta de representatividade negra em posições estratégicas nas empresas. O mesmo acontece no esporte, que poderia aproveitar esse exemplo e deixar o movimento esportivo mais plural.
Algumas iniciativas existem, mas elas não têm sido eficientes.
Na Inglaterra uma iniciativa ineficaz
A Liga Inglesa de Futebol (EFL) decidiu enfrentar o problema. Ela tem uma política – chamada de “Regra de Rooney” – em que os clubes devem ter no processo de seleção pelo menos um candidato negro, ou asiático, ou de etnia minoritária para uma vaga administrativa, o grupo chamado BAME. Mas existem brechas para o clube não cumprir essa regra. Por exemplo, ela não precisa ser cumprida se não houver um processo de seleção e for ouvido apenas um candidato. Além disso, não existe punição para clube que não cumprir a regra.
Depois de um projeto piloto de 18 meses, a EFL introduziu a política em 2019 – depois que os clubes votaram a favor – se tornando a única liga na Europa a ter um regulamento nesse sentido.
No futebol inglês, segundo a BBC, existem apenas seis gerentes da BAME (Black, Asian and minority ethnic – negros, asiáticos e minorias étnicas) entre os 91 principais clubes do país.
“Você não será responsabilizado. É como mergulhar os dedos dos pés sem nadar”, disse Troy Toowsend, dirigente da organização de combate ao racismo e busca pela inclusão Kick it Out.
A Premier League não adotou a ‘regra de Rooney’ – e, segundo a BBC, não tem planos de adotar.
Um problema global
A falta de representatividade dos negros em postos de comando é um problema global no esporte.
Fatma Samoura tinha uma longa história como funcionária da ONU, trabalhando em diversas funções, até ser anunciada, em 2016, como secretária-geral da Fifa. Sua chegada à entidade foi comemorada como uma mudança de paradigma, já que ela é uma das poucas pessoas negras a ocupar um cargo de tamanha relevância em escala global.
No Brasil são raros os técnicos negros entre os principais clubes, e ainda mais raro é ver dirigentes negros no comando do esporte.
Para especialistas, a falta de mais negros em posições de chefia na administração do futebol faz com que as ações para combater o problema sejam menos eficazes e as punições para crimes de racismo no esporte sejam mais brandas .
“Sem dúvida, a falta de negros em cargos de comando – técnico, gestor, dirigente – influencia nessa questão. Desde sempre são brancos legislando e julgando casos de racismo vivido por negros. Se vivessem na pele, seria diferente”, opina Marcel Tonini, doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
“A estrutura do esporte, do futebol, é muito racista. Temos jogadores negros, mas é chão da fábrica. Não temos dirigentes, treinadores ou comentaristas negros. Se a grande maioria dos atletas são negros, como não temos a representatividade nas bancadas?”, questiona o fundador do Observatório do Racismo, Marcelo carvalho.
O futebol até endureceu a política de combate ao preconceito
Em julho de 2019, a Fifa anunciou um Novo Código Disciplinar, cujo texto dá ênfase ao combate ao racismo.
O presidente da Fifa, Gianni Infantino, já falou sobre sua insatisfação com o racismo que se apresenta no futebol. “O racismo se combate com educação, condenando, falando nele. Não se pode ter racismo na sociedade e no futebol. Na Itália, a situação não melhorou, isso é grave. Precisamos identificar os autores e expulsá-los dos estádios. Não devemos ter medo de condenar os racistas, devemos combatê-los até o fim”, falou.
Mas o futebol não tem dado o exemplo de um combate efetivo ao problema do racismo no futebol.
A história mostra que penas financeiras não tem ajudado a diminuir os crimes de injúria racial. É preciso ser mais rigoroso, e punir o clube também esportivamente.
O Grêmio ainda é o único clube que sofreu uma punição mais dura da Justiça Desportiva brasileira no caso do goleiro Aranha. O time foi eliminado da Copa do Brasil de 2014 por conta de manifestações racistas dos torcedores.
Poderia ser uma nova régua para o esporte brasileiro; não foi.
E essa impunidade passa também pela falta de representatividade.
A escolha da Magalu
Criar regras que incluam as minorias poderia ser um caminho para se atenuar o problema. Mas elas precisariam ser mais eficazes do que a criada pelo futebol inglês.
A iniciativa da Magalu veio depois de uma análise que chegou a um número que provocou uma grande reflexão interna. Apenas 16% dos representantes de lideranças da empresa são negros.
No comunicado, a rede diz que “para uma empresa que prega o valor das pessoas e da diversidade e que celebra todos os dias o Brasil, um país multirracial. Seria uma hipocrisia fechar os olhos e assumir que não há alguma coisa errada. É claro que há. Partindo do princípio de que não somos uma empresa racista e que acreditamos no poder da diversidade, onde está o problema?”
Isso é racismo estrutural. Aquele silencioso, que perpetua uma cultura de abandono e preconceito contra os negros, mantendo o privilégio branco escondido no discurso da “meritocracia”..
Os que criticaram a ação falam em “preconceito contra brancos”, algo que todo mundo que quiser realmente refletir sobre essa questão sabe que não existe. No Brasil, definitivamente não..
O que a rede varejista fez foi tomar uma “ação afirmativa” no combate à desigualdade, como várias empresas globais têm feito e inclusive órgãos públicos da Europa e dos Estados Unidos já fazem há vários anos.
Incluir, não segregar. Abraçar, não afastar. O esporte nasce também dessa ideia de pertencimento a todos. E ele sempre foi um exemplo para a sociedade. Mas seria interessante se ele também dessa uma olhadinha para o lado, e adotando bons exemplos evoluísse de fato no combate ao preconceito racial.
Em 2020, a Magalu deu um exemplo de como o esporte pode dar mais um passo importante para driblar e vencer esse problema ainda grave, na vida e no esporte.
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