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6×0 para a Argentina: hora de repensar a formação dos nossos atletas

*Leonardo Garcia[1]

A derrota do Brasil por 6×0 para a Argentina no Sul-Americano Sub-20 não é apenas um resultado negativo. É o maior vexame da história da base do futebol brasileiro, um país que sempre foi referência mundial na formação de atletas. Esse episódio não pode ser visto como um simples tropeço, mas sim como um sintoma de problemas profundos e estruturais.

Recentemente, o Brasil já havia enfrentado outro revés significativo: foi eliminado por Israel nas quartas de final do último Mundial Sub-20, realizado na Argentina. Para um país que tradicionalmente domina as categorias de base, esses resultados são um sinal claro de que algo está errado e precisa ser corrigido urgentemente.

Algumas situações têm se observado nos últimos anos e ajudam a entender esse declínio. Apesar de os clubes contarem hoje com estruturas muito mais avançadas, os fundamentos técnicos estão sendo negligenciados.

Aquilo que sempre foi o diferencial do futebol brasileiro – o domínio da bola, o drible, os passes precisos, a improvisação – perdeu espaço nos treinamentos. O foco excessivo em modelos táticos importados, aliados à pressão por resultados imediatos, está formando jogadores que chegam ao Sub-20 e até ao profissional com graves deficiências técnicas e táticas. Estamos perdendo o que sempre foi nossa essência, e isso está refletido em campo.

Outro problema que tem sido amplamente discutido é a priorização excessiva da força física nas categorias de base, especialmente abaixo do Sub-15. Muitos treinadores optam por escalar jogadores mais fortes fisicamente, mas com qualidade técnica inferior, em vez de apostar em crianças talentosas que ainda não maturaram fisicamente.

Isso ocorre porque, nessas categorias, a força física faz muita diferença em competições, e a pressão por resultados leva os treinadores a buscarem vantagens imediatas. O resultado é que meninos com talentos natos no futebol, mas com estrutura física menor, acabam desestimulados, sendo dispensados ou nem mesmo conseguindo passar pelas peneiras.

Casos como os de Kaká, Alex (ex-Palmeiras, Cruzeiro e Fenerbahçe) e Messi demonstram a importância de olhar além do porte físico. Kaká, por exemplo, era visto como frágil durante sua formação, mas tornou-se um dos melhores jogadores do mundo. Alex, com um talento técnico refinado, também enfrentou dificuldades na base por sua estrutura física.

No entanto, ambos conquistaram carreiras brilhantes, provando que talento e inteligência de jogo superam qualquer limitação física inicial. É fundamental entender que a base não deve ser um ambiente que exclua talentos, mas sim que os desenvolva e os prepare para o futuro.

Outro ponto crítico que não pode ser ignorado é a má formação escolar dos atletas. Muitos clubes, embora invistam em infraestrutura e treinamentos físicos, negligenciam a formação educacional de seus jovens. Isso cria uma geração de jogadores que, além de serem mais limitados no entendimento do jogo – já que o futebol exige leitura tática e decisões rápidas – enfrentam sérias dificuldades de adaptação em outros países quando são vendidos.

A falta de uma base educacional sólida reflete-se também em dificuldades de relacionamento, aprendizado de idiomas e compreensão de diferentes culturas. Essa questão, embora mereça um artigo à parte, é mais um reflexo de como o modelo atual de formação está desalinhado com o desenvolvimento completo do atleta.

Além disso, a preparação psicológica é outro aspecto preocupante. Apesar de muitos clubes possuírem departamentos de psicologia, o trabalho costuma ser coletivo e superficial, sem o acompanhamento individual que cada jovem atleta precisa.

Os jogadores de hoje enfrentam pressões muito maiores do que as gerações anteriores, principalmente por causa das redes sociais. Qualquer deslize, dentro ou fora de campo, rapidamente vira notícia e expõe os atletas a julgamentos cruéis e desproporcionais. Esse cenário exige um cuidado psicológico intenso e individualizado, algo que ainda não é tratado com a seriedade necessária.

A formação precoce também tem gerado consequências negativas. No passado, os jovens ingressavam nos clubes por volta dos 14 ou 15 anos, após terem vivido plenamente a infância, jogando futebol por diversão e convivendo com a família.

Hoje, com categorias Sub-7 e Sub-8, as crianças entram muito cedo em um ambiente competitivo e cheio de pressão, sendo submetidas a avaliações e dispensas anuais. Isso rouba delas a alegria do jogo e transforma o futebol em uma obrigação. Muitos jovens desistem do esporte antes mesmo de atingir os 15 anos, exaustos de uma rotina extenuante e pouco estimulante. Isso é um desperdício de talentos que poderiam brilhar no futuro.

Os treinadores das categorias de base também sofrem com baixos salários e uma pressão enorme por resultados imediatos. Isso os força a priorizar treinos táticos para vencer campeonatos irrelevantes, em vez de focarem no desenvolvimento técnico individual dos jogadores.

Como resultado, muitos atletas chegam ao profissional sem saber executar fundamentos básicos, como chutar ou cruzar com ambas as pernas, cabecear corretamente ou dominar a bola de forma orientada. Investir nos treinadores, valorizá-los financeiramente e dar a eles segurança no trabalho é fundamental para que possam desenvolver os jovens com calma e foco na formação, não nos resultados de curto prazo.

O exemplo do Palmeiras, que faturou mais de um bilhão de reais nos últimos anos com a venda de jogadores da base, mostra que investir em formação de qualidade é não apenas viável, mas extremamente lucrativo.

Um modelo bem estruturado de base não só forma atletas completos, mas também garante a sustentabilidade financeira dos clubes. É preciso resgatar a essência do futebol brasileiro, devolvendo às crianças a liberdade de jogar por prazer até os 14 anos e priorizando os treinos técnicos. É fundamental também capacitar os treinadores e proporcionar a eles tranquilidade para formar atletas que possam brilhar no futuro.

O 6×0 para a Argentina é um golpe doloroso, mas também deve ser encarado como um alerta poderoso. É hora de uma reflexão séria e coletiva sobre o que está acontecendo com a formação de base no Brasil. Onde estamos errando? Como podemos corrigir o rumo? Este não é apenas um problema dos clubes, treinadores ou jogadores – é uma questão que envolve toda a comunidade do futebol brasileiro. Precisamos unir esforços para reconstruir um modelo que valorize a técnica, a inteligência de jogo, a educação e o bem-estar dos nossos jovens atletas. Não podemos permitir que o Brasil, terra de craques que encantaram o mundo, perca sua essência. O futuro do nosso futebol depende das decisões que tomarmos hoje. A hora de agir é agora.

Crédito imagem: Juan Barreto / AFP

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[1] Procurador do Estado do Espírito Santo, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP, Pós-graduado em Direito Desportivo e auditor do TJD/ES.

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