Pesquisar
Close this search box.

A abertura ao capital estrangeiro é inevitável?

Durante anos, o futebol brasileiro ficou, por sua grande maioria, fechado aos investimentos estrangeiros. Podemos narrar algumas parcerias bem sucedidas dentro de campo, como, por exemplo, Corinthians e MSI (Media Sports Investment), Palmeiras e Parmalat e outras nem tanto, como a do Flamengo e a ISL. Contudo, essa realidade de interesse, proveniente além da fronteira, promete ser cada vez mais frequente.

Isso porque, a Lei das SAF trouxe segurança jurídica aos investidores, pois foi dotada de um arcabouço extremamente necessário para apresentar um caminho viável para clubes altamente endividados e, simultaneamente, foi responsável por tornar o cenário mais atrativo para os interessados em adquirir percentuais das entidades desportivas.

Algumas equipes já aderiram a esse modelo, como o Botafogo, protagonizada pelo empresário americano John Textor, que já detinha participação em clubes europeus, o Cruzeiro, através da figura do ex jogador Ronaldo, e outros parecem bem encaminhados, como o Vasco da Gama com o grupo americano Partners 777, que, igualmente, possui participação em alguns clubes europeus. Tudo isso, em menos de um ano de aprovação da Lei 14.193/21.[1]

Nesse sentido, essa chegada do capital estrangeiro e o advento da lei não representam somente a esperança de novos investimentos no futebol, aumentando a competitividade da equipe, como também a profissionalização da gestão das entidades e a redução das dívidas. O futebol brasileiro não aguentava mais gestões amadoras que durante anos dilapidaram o maior patrimônio dos torcedores e, ao mesmo tempo, afastaram o principal exponente dos clubes, que era o próprio adepto.

Ocorre que, todavia, a situação atual nos desperta muitas dúvidas sobre como se dará a evolução do comando das entidades por agentes do mercado oriundos do exterior e se isso seria predominante aqui no Brasil. Afinal, há uma possibilidade de perda da identificação com o clube, com suas raízes, com sua história e aproximação com seu torcedor?

Em primeiro lugar, faz-se necessário introduzir alguns números para demonstrar como funciona o mercado europeu, percursor no modelo de gestão e profissionalização dos clubes, que adotaram, há muito tempo atrás, a modalidade de clube empresa.

Atualmente, na Serie A, na Itália, 9 dos 20 participantes contam com a participação majoritária de acionistas estrangeiros, segundo o CIES Sports Intelligence[2]. A maioria dos investidores são americanos, com a exceção de um canadense (Bologna) e de um chinês (Internazionale de Milão). Por sua vez, a Bélgica conta com 17 dos 26 clubes[3] profissionais majoritariamente nas mãos dos investidores estrangeiros, distribuídos de forma mais democrática, com 14 nacionalidades diferentes envolvidas.

Na Inglaterra, o maior mercado do mundo, até o final do ano passado, 70% das equipes da Premier League tinham como acionistas majoritários investidores provenientes do exterior e 10% das entidades restantes ainda possuía participação minoritária vindo de fora das fronteiras[4]. Ao todo, 16 dos 20 clubes contavam com alguma participação estrangeira.

Com efeito, o futebol é cada vez mais percebido como um canal propício para diversificar o portifólio de propriedade dos investidores, assim como para promover uma marca por meio de parcerias com patrocinadores e posicioná-la para conquistar novos mercados e consumidores, inclusive globalmente.

Comumente, os investidores são originários da China e dos EUA, as duas maiores potencias econômicas mundiais. Nesse contexto, até o início do ano passado, entre os 34 clubes controlados por estrangeiros nas cinco principais ligas, 44% pertenciam majoritariamente a empresários americanos ou chineses.[5]

Da mesma forma, para algumas empresas, pessoas físicas e até governos, o futebol é visto como uma ótima oportunidade de apagar ou esconder ações que eles não querem que sejam conhecidas pelo resto do mundo, como a recorrente violação dos direitos humanos. Essa prática tem sido chamada de “sportwashing”[6] e tem ganhado cada vez repulsa dos organizadores da modalidade, que vem criando barreiras para esse tipo de investimento.

Além disso, não podemos olvidar que a Europa é considerada como um mercado enorme e lucrativo, posto que é o principal centro de negociação de jogadores e o principal em geração de receitas no âmbito do esporte. Portanto, altamente favorável para a produção de um mercado altamente rentável, que, além de fabricar publicidade positiva, capaz de interferir inclusive na esfera pessoal do investidor, pode trazer o retorno financeiro almejado.

Por outro lado, outros mercados que são potências futebolísticas, como a Espanha e a Alemanha, ainda contam como uma participação extremamente baixa dos investidores estrangeiros em comparação com as outras ligas. No país ibérico, apenas 3 clubes dos 20 participantes de Laliga possuem participação no quadro societário de estrangeiros, com destaque para o Atlético de Madrid, Espanyol e o Valencia.

Há pouco tempo, o clube da capital ampliou o capital com a emissão de novas ações, principalmente com o escopo de mitigar os efeitos da crise gerada pela pandemia. A operação se deu através da Atlético HoldCo,[7] criada por dois acionistas do clube que detém juntos 65,98% do capital dos colchoneros. Ambos acabaram vendendo a participação de 33,96% na Atlético HoldCo para o grupo Ares Management Corporation.

A promessa era injetar mais de 180 milhões de euros no clube, que além dessa empresa, ainda conta com a participação considerável do fundo de investimentos israelense Quantum Pacific Group no seu quadro de acionistas. Antes, uma parte pertencia ao grupo chinês Dalian Wanda Group, que deixou o clube em 2018.

Entretanto, a realidade do futebol espanhol é bem complexa, posto que a legislação é mais restritiva e tem forte intervenção estatal no esporte. Podemos citar como exemplo dessa característica centralizadora a necessidade de submissão da solicitação de aquisição ao Conselho Superior de Esportes, igual ou superior a 25% da participação societária.

Esse órgão deverá emitir uma resolução fundamentada, em até 3 meses, autorizando a compra. Esse mesmo organismo detém o dever de fiscalizar a atividade financeira dessas entidades, que devem prestar informações com detalhes sobre a contabilidade, por exemplo.

Esse excesso de burocracia é importante para se manter a integridade nos investimentos e dos investidores, mas não justifica a ausência de investimentos estrangeiros em massa nos clubes espanhóis. Sob esse viés, elucidamos que a situação de crise econômica enfrentada no país e pelos clubes no começo da década de 2010 pode ter sido um empecilho para isso.

Uma vez implementado o controle econômico, já explicado aqui em outra oportunidade por este autor[8], definitivamente no ano de 2014, que passou a ser referência mundial, o endividamento dos clubes caiu e criou-se um ambiente mais estável e seguro para os investimentos.

Nos últimos anos, algumas equipes tradicionais da segunda divisão, como o Almería, o Valladolid e, mais recentemente, o Real Zaragoza foram adquiridos por investidores estrangeiros. Com a crise provocada pela pandemia e a necessidade dos clubes de obter novos meios de investimento ou fontes de receita, é possível um boom nas aquisições nos próximos anos também no território espanhol.

Por último, para completar nossa análise do mercado europeu, passamos pelo futebol alemão, que tem um dos modelos mais equilibrados e, com certeza, onde se chegou ao meio termo quando da discussão da internacionalização das equipes pátrias. Nessa esteira, exigiu-se que mais de 50% das ações dos clubes ficassem sob domínio da associação. Essa regra 50+1 busca proteger os clubes de proprietários que visem apenas o lucro, além de salvaguardar os costumes e valores das entidades de desporto e de seus torcedores.

As exceções são Bayer Leverkusen, Wolfsburg e Hoffenheim[9], controlados 100% por empresas, o que é permitido pela liga sob a condição de que o investidor tenha apoiado o time de forma substancial e contínua por mais de 20 anos. Sem embargo, esse sistema não é perfeito e apresenta algumas brechas.

Nesse contexto, o Red Bull Leipzig encontrou uma maneira de burlar essa regra. A empresa de energético, para se adequar ao sistema do 50+1, fundou uma associação, na qual todos os seus membros são funcionários da própria Red Bull. O drible no sistema gerou muitas críticas em todo o país por uma suposta violação ao espírito da norma.[10]

Exposto o cenário europeu, parte-se agora para a explanação do futebol brasileiro, respondendo aos questionamentos iniciais. Uma das grandes preocupações e dúvidas do torcedor é a possível perda de identidade do clube, seja através da cor da camisa, do escudo até o relacionamento entre o dono e a história da entidade, seus hábitos e suas origens.

O receio da torcida é pertinente, já que, em um ambiente cada vez mais voltado para o lucro e o negócio, com a profissionalização dos clubes, continuaria existindo vida além dos números? O desempenho desportivo do time seria sempre sacrificado em prol dos possíveis ganhos econômicos do proprietário?

A Lei 14.193/21 pareceu se atentar aos mínimos detalhes sobre isso e tratou de assegurar que a associação mantivesse, ao mínimo, 10% das ações ordinárias de classe A, que obrigatoriamente serão subscritas exclusivamente pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu. Em outras palavras, a associação permanecerá com um percentual na SAF nos casos de cisão do departamento do futebol, como vem ocorrendo aqui no Brasil com a maioria dos clubes que adotaram o modelo da SAF.

Ademais, a Lei se apegou na manutenção da identidade do clube original, ressalvando que deve passar pelo crivo da entidade originária, através de votação, uma possível mudança nos signos identificativos da equipe de futebol profissional, incluídos símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores, bem como mudança da sede para outro município e até alteração na denominação.

Por outro lado, alguns clubes, preocupados com a possível influência e resultados negativos quando da chegada de investidores estrangeiros ao se tornarem proprietários, juntamente com a desnecessidade atual de se converterem em sociedade anônima, passaram a cogitar outro tipo de financiamento, o que lhe garantiria um capital extra para investimentos no desenvolvimento da equipe.

Sendo assim, ainda que seja uma realidade distante, passou-se a comentar sobre a possibilidade de Oferta Pública das Ações (IPO), ou seja, que os clubes passem a figurar como empresa de capital aberto na Bolsa de Valores[11], como já ocorre em alguns países com grandes times, como o Ajax, a Juventus e o Manchester United, por exemplo.

A intenção é justamente dispersar o domínio na própria sociedade, afastando o risco já mencionado nesse artigo e podendo trazer um equilíbrio político. Entretanto, a questão não parece fácil, uma vez que aumentariam as exigências e a fiscalização, o que poderia acelerar a profissionalização, desta vez impostas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), principalmente no que concerne à governança, transparência e rentabilidade ao longo prazo.

Do mesmo modo, ressalte-se que esse tipo de ação apresenta alta volatilidade, pois se tratam de clubes de futebol, portanto, sujeitos a mudanças no valor da ação devido a situações ocorridas no campo, como vitórias e derrotas, títulos ou fracassos, além de contratações exitosas ou não.

Conforme o exposto, não há modo correto ou perfeitamente seguro de se fazer um clube ou uma composição societária, que possa agradar, no final das contas, todas as partes envolvidas. Decerto, o único caminho a ser percorrido é o da profissionalização.

O interesse dos investidores estrangeiros é inevitável em razão do valor atual de câmbio e da expectativa de aumento, em um futuro próximo, das receitas dos clubes com o processo de profissionalização do futebol brasileiro, que inclui a criação de uma Liga e discussões sobre comercialização dos direitos de transmissão. O futebol nacional tem tudo para ser rentável ao longo prazo.

Desde o primeiro momento, para que não haja decepção nesse processo, o contrato deve ser bem discutido e, acima de tudo, transparente.  Se possível, deverá contar com representantes que possam traduzir o real sentimento e a expectativa dos torcedores, passando por todas as etapas necessárias dentro da própria associação. Por fim, é fundamental analisar a figura do investidor e a vida pretérita pessoal e da sua empresa antes de concretizar o negócio.

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1]Lei das SAF, Lei 14.193/21 – L14193 (planalto.gov.br)

[2] CIES Sports Intelligence: publicações | LinkedIn

[3] CIES Sports Intelligence: publicações | LinkedIn – última consulta: 12.04.2022

[4] Premier League: líder del negocio a través del capital extranjero | El Economista – última consulta: 12.04.2022

[5] Predominante na Europa, modelo de clube-empresa pode ser espelho para o Brasil – Pequenas Empresas Grandes Negócios | Negócios (globo.com) – última consulta: 12.04.2022

[6] “Sportswashing”: o que a compra do Newcastle ensina sobre essa palavra que ganha cada vez mais espaço no futebol | futebol internacional | ge (globo.com) – última consulta: 12.04.2022

[7] El Atlético tiene un nuevo socio inversor: Ares Management – AS.com – última consulta: 12.04.2022

[8] Liga parte 1: Controle Econômico, a pedra fundamental – Lei em Campo – última consulta: 12.04.2022

[9] Predominante na Europa, modelo de clube-empresa pode ser espelho para o Brasil – Pequenas Empresas Grandes Negócios | Negócios (globo.com) – última consulta: 13.04.2022

[10] Entenda como funcionam os “clubes-empresas” em Alemanha, Itália, Inglaterra e Portugal | blog do rodrigo capelo | ge (globo.com) – última consulta: 13.04.2022

[11] IPO de clubes de futebol na B3 pode ser realidade nos próximos 5 anos – Mercado – Estadão E-Investidor – As principais notícias do mercado financeiro (estadao.com.br) – última consulta: 13.04.2022

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.