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A Arbitragem Esportiva e as Leis Gerais do Esporte

Por Pedro Henrique Bandeira Sousa[7]

Em 15 de junho de 2023 foi sancionada e passou a vigorar a nova Lei Geral do Esporte (lei 15.597/23) que, após crivo do Presidente da República e veto de algumas disposições, seguir para o Congresso Nacional para deliberação e eventual rejeição ou aceitação dos vetos.

Um dos dispositivos que foi vetado pelo Presidente foi, justamente, o art. 217, inciso II, que revogava a lei 9.615/98 (“Lei Pelé”), lei geral anterior, promovendo uma situação sui generis na qual o cenário desportivo – ou esportivo, como chama a nova lei geral – existe sob a vigência concomitante de duas leis gerais relativas ao esporte.

Trata-se de uma situação peculiar, onde dispositivos que não seriam mantidos pelo legislador permanecem em vigência, assim como os artigos que seriam modificados pela nova lei, criando uma aparente contradição entre os textos legais.

Segundo explica a senadora Leila Barros, relatora no Senado da proposta que originou a lei, a manutenção da vigência da Lei Pelé foi necessária para evitar um vácuo na legislação esportiva[1], no esteio do que consta na exposição de motivos de veto[2]:

“Em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público porque, na medida em que foram solicitados todos os vetos acima justificados, há necessidade de manutenção da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, para que não haja lacuna jurídica no arcabouço normativo do direito ao esporte.”

Dentre os artigos da Lei Pelé que permanecem em vigência, destaca-se o art. 90-C da Lei Pelé, que permite a arbitragem no âmbito esportivo: “As partes interessadas poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, vedada a apreciação de matéria referente à disciplina e à competição desportiva”.

A Lei 14.597/23 apresentava em seu texto aprovado e submetido ao crivo presidencial o parágrafo único do art. 27 que, no esteio do art. 90-C da Lei Pelé, permitia a resolução de disputas através da arbitragem no âmbito esportivo patrimonial e das relações do trabalho e emprego, acrescentando ainda a possibilidade de arbitragem das matérias disciplinares: “É admitida a arbitragem, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, como meio para resolução de conflitos de natureza esportiva, no que se refere à disciplina e à prática esportiva, bem como para questões patrimoniais, inclusive de trabalho e de emprego”.

Referido dispositivo foi vetado pelo Presidente da República, apresentando-se as seguintes razões:

“Os dispositivos tratam de autonomia esportiva, edição de códigos de justiça desportiva próprios pelas organizações esportivas e uso da arbitragem em conflitos de natureza desportiva, inclusive em questões de trabalho e emprego.

Em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público porque extrapola o atributo das entidades, que tem caráter instrumental para proteção do direito social ao esporte e se limita à organização e ao funcionamento das entidades e não pode estabelecer outros entraves à atuação do Estado que vise assegurar a prática esportiva. Regular a prática esportiva significa disciplinar os elementos que lhes são próprios, vale dizer, as regras de disputa e de disciplina que são adstritas à respectiva prática esportiva.

Ademais, a proposição legislativa incorre em vício de inconstitucionalidade por ofensa ao disposto no inciso XXXV do caput do art. 5º da Constituição, uma vez que a disciplina esportiva não comporta a resolução de conflitos por meio de arbitragem sem o risco de decisões que não guardem uniformidade entre si. Poderia haver restrição de acesso à Justiça, inclusive aquele previsto nos § 1º e § 2º do art. 217 da Constituição, por gerar dúvidas quanto à sua aplicabilidade objetiva e subjetiva (arbitrabilidades).

Outrossim, a proposição legislativa contraria o interesse público porque dificulta o controle. Destaque-se que as entidades de administração exerceriam monopólio em relação à modalidade, o que abriria campo para abuso. Retiraria-se do Conselho Nacional do Esporte – CNE a competência para editar um código-base aplicável a todas as modalidades.

Por fim, a proposição legislativa contraria o interesse público porque retiraria da tutela da Justiça Especializada os conflitos que podem surgir da relação empregatícia no âmbito esportivo ao aplicar a arbitragem indiscriminadamente para quaisquer empregados – e não apenas àqueles com remuneração mais elevada – e sem que houvesse sequer o condicionamento à sua manifestação de vontade, fragilizaria e comprometeria a integral aplicação do Direito do Trabalho.”

Em breve resumo, os motivos para o veto em relação à utilização da arbitragem como método de resolução de disputas foram tanto políticos, quanto jurídicos[3], sendo eles: (i) inconstitucionalidade por força do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal; (ii) redução do acesso à justiça, com relação ao art. 217, §1º e §2º, da Constituição Federal, por gerar dúvidas quanto à sua arbitrabilidade e; (iii) contrariedade ao interesse público, pois retiraria da tutela da Justiça Trabalhista os conflitos que pudessem surgir, sem que houvesse sequer um condicionamento à manifestação de vontade pelo empregado.

Por força do veto à revogação da Lei Pelé, em que pese o veto ao parágrafo único do art. 27 da Lei 14.597/23 e as razões motivadoras, permanece possível a solução de conflitos através da arbitragem, ainda que em matéria trabalhista[4][5].

Importante frisar que o veto não se deu em função de eventual inconstitucionalidade do parágrafo único em relação ao art. 217 da Constituição Federal, o que já foi ventilado na comunidade jurídica. A possibilidade de resolução de conflitos através da arbitragem não ofende o art. 217, que assim dispõe:

“Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II – a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III – o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;

IV – a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§ 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.”

Com efeito, o parágrafo primeiro do artigo supracitado dispõe que ações relativas à disciplina e competições desportivas somente serão admitidas pelo Poder Judiciário quando as instâncias desportivas forem esgotadas, devidamente regulada pela lei. Contudo, além de o texto não mencionar a arbitragem, mas tão somente o Poder Judiciário, há previsão expressa de regulamentação por lei, o que permite concluir que o parágrafo único do art. 27 da Lei 14.597/23 seria, exatamente, essa regulamentação exigida pela Constituição e, assim, não haveria de se falar em inconstitucionalidade por esse motivo.

No tocante à eventual restrição do acesso à “justiça especializada” como menciona as razões do veto, por gerar dúvida quanto à arbitrabilidade subjetiva e objetiva, parece que o referido ponto carecia de melhor esclarecimento podendo, contudo, ser separado em dois pontos específicos: (i) a da restrição do acesso à justiça e (ii) da dúvida quanto à arbitrabilidade. A discussão quanto à arbitrabilidade mostra-se prejudicada, pois não houve melhor explicação de como o texto legal afrontaria a arbitrabilidade objetiva e subjetiva sob o aspecto da Lei 9.307/96. Assim, seria possível somente presumir a motivação do veto, o que não se mostra razoável do ponto de vista acadêmico.

Contudo, quanto ao ponto do acesso à justiça, que parece se misturar com o terceiro motivo do veto, qual seja, a suposta retirada da tutela da Justiça Trabalhista, trata-se de uma questão há tempos discutida pela comunidade, no sentido de que a arbitragem seria uma violação ao princípio da inafastabilidade do poder judiciário, no caso de forma ainda mais gravosa, pois afastaria os conflitos da tutela da justiça especializada, a Trabalhista.

Entretanto, no célebre julgamento da constitucionalidade da Lei de Arbitragem[6], a Exma. Ministra Ellen Gracie foi pontual em ensinar que a arbitragem não representa violação ao referido princípio, mas subsiste em harmonia com o mesmo:

“A leitura que faço da garantia enfocada no art. 5º, XXXV, é de que a inserção da cláusula assecuratória de acesso ao judiciário, em nosso ordenamento constitucional, tem origem e se explica pela necessidade de precatarem-se os direitos dos cidadãos contra a atuação de órgãos administrativos, próprios de regimes autoritários. A arqueologia da garantia da via judiciária leva-nos a verificar que a cláusula sempre teve em mira, preponderantemente, o direito de defesa ante os tribunais, contra atos dos poderes públicos. Por isso mesmo é, ineludivelmente, o legislador o destinatário da norma que reza: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Creio que essa leitura é coerente com as anteriores manifestações do Supremo Tribunal Federal, pois verifico que a Corte já se posicionou no sentido de inadmitir que barreiras econômicas se anteponham ao exercício do direito de acesso ao judiciário, quando, por exemplo, eliminou a obrigatoriedade de depósito preparatório nas ações que tenham por objeto discutir o débito para com o INSS, suspendendo a vigência do artigo 19, caput, da Lei 8.807/94 […].”

Assim, não cabe dizer que a opção pela arbitragem para resolver os conflitos represente qualquer violação ao acesso da justiça “especializada”, cumprindo destacar ainda que a possibilidade de escolha dos árbitros que irão resolver a matéria pode vir a se mostrar ainda mais especializado, dada a especificidade do esporte que deve ser somada à especialização da matéria trabalhista.

Contudo, não se pode ignorar o correto apontamento feito nas razões de veto quanto ao condicionamento da arbitragem à manifestação de vontade do empregado. A essência do instituto sobrevive justamente na manifestação da vontade das partes em submeter eventuais conflitos à arbitragem, de forma com que a imposição da arbitragem ao empregado se mostre como um obstáculo de relevância. Aqui, igualmente, cabe trazer ao debate a especificidade do esporte e a necessidade de resguardar o interesse da coletividade esportiva.

Em resumo, o instituto da arbitragem esportiva, permitida pela Lei Pelé e seu artigo 90, segue em franco crescimento, sendo amplamente utilizado pelo mercado, visto que ainda não foi revogado pela Lei 14.597/23. Contudo, o próximo capítulo para a arbitragem esportiva dependerá da votação dos vetos no Congresso Nacional, e o cenário futuro da arbitragem é confuso e incerto, podendo seguir os seguintes (e diversos) caminhos: (a) a manutenção do veto ao artigo da Lei 14.597/23 que revoga a Lei Pelé, mantendo-se a vigência da Lei Pelé e o art. 90-C e que poderá ainda (a.1) ter a concorrência do art. 27, p.u., da nova lei ou (a.2) vigorar solitário, caso seja mantido o veto ao referido artigo; (b) a rejeição do veto quanto à revogação da Lei Pelé, revogando-a, e a rejeição do veto quanto ao art. 27, p.u., da Lei 14.597/23, permitindo a continuidade da arbitragem por previsão legal e; (c) a rejeição do veto quanto à revogação da Lei Pelé, revogando-a, mas, a manutenção do veto ao art. 27, p.u., da Lei 14.597/23, cenário no qual retira-se a previsão em lei da arbitragem esportiva, obrigando o instituto e o mercado a se moldarem conforme a realidade que passará a prevalecer, adequando-se os contratos e as relações para permitir a resolução de conflitos através da arbitragem, através de vontade das partes e com observância unicamente ao que dispõe a Lei de Arbitragem.

Crédito imagem: Pixabay

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[1] Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/06/16/mesmo-com-vetos-lei-geral-do-esporte-e-um-avanco-diz-leila-barros.

[2] Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/Msg/Vep/VEP-0273-23.htm.

[3] Sobre a diferença dos tipos de veto: https://www.congressonacional.leg.br/materias/vetos/entenda-a-tramitacao-do-veto.

[4] Tive oportunidade de escrever um artigo sobre a matéria, que serve como base para o aprofundamento do estudo: Arbitragem Esportiva e a Lei Pelé: Aplicabilidade do Artigo 90-C Após a Reforma Trabalhista. MARTINS, Carlos Eduardo Behrmann Rátis. (Org.). O Direito e a Advocacia: novos tempos / organização Carlos Eduardo Behrmann Rátis Martins, Gilberto Lopes Teixeira e Bruno Novaes Bezerra Cavalcanti. São Paulo: IASP, 2021, v. 1, p. 107-126.

[5] Não se desconhece o recente julgado do Tribunal Superior do Trabalho, que discutiu sobre a matéria, em sentido contrário ao que a produção acadêmica mencionada. Entretanto, pelo que se tem conhecimento ainda não há outros julgados sobre a matéria e, considerando que existe a possibilidade tanto de reversão, quanto manutenção do entendimento, não se adentrará na discussão da arbitragem no âmbito trabalhista nessa oportunidade.

[6] Superior Tribunal de Justiça. Tribunal Pleno. Agravo Regimental na Sentença Estrangeira 5.206. J. 12 dez. 2001.

[7] Árbitro e Professor.  Doutorando em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica Portuguesa – Lisboa/Portugal. Fellow da Chartered Institute of Arbitrators – CIArb/United Kingdom. Membro da Comissão Nacional de Direito Desportivo – Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Presidente do laboratório de pesquisas da Academia Nacional de Direito Desportivo – ANDD-Lab. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/SC. Membro da Comissão de Direito Desportivo OAB/SC. Membro do Comitê Brasileiro de Arbitragem – CBAr. Membro da Comissão de Direito Desportivo do Instituto de Advogados de Santa Catarina – IASC. Membro da Associação Portuguesa de Direito Desportivo.

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