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A baixaria dos bacharéis

Por Pitágoras Dytz

Há pouco mais de duas semanas, a imprensa brasileira noticiou que durante uma partida de handebol em que se enfrentavam equipes formadas por estudantes de Direito da PUCSP e da USP, torcedores daquela teriam proferido ofensas de cunho racista e elitista. Das arquibancadas, como quem conta dinheiro, os pretensos apoiadores dos atletas da PUC esfregavam os indicadores e os polegares, e, não contentes, dirigiam a atletas e torcedores adversários as palavras “pobre” e “cotista”. A celeuma estava posta, as reações não demoraram a surgir. Parlamentares pediram ao Ministério Público a apuração da materialidade e autoria e a devida responsabilização. As diretorias e os centros acadêmicos de ambas as instituições não tardaram a agir, emitindo nota conjunta repudiando veementemente a atitude e afirmando não apenas não compactuarem com elas, mas também que farão desse caso um exemplo[1]. De acordo com outra publicação, quatro dos envolvidos nos atos criminosos teriam sido desligados de seus estágios em escritórios de advocacia, ação que se fez acompanhar de notas públicas nas quais as bancas afirmam não pactuar com atitudes discriminatórias[2]. Na mesma linha, cortando na carne, o Centro Acadêmico 22 de Agosto, da PUCSP, afastou um de seus membros e a própria Universidade criou comissão para apurar o caso, grupo que conta com 40 dias para apresentar suas conclusões à reitoria da entidade[3].

Antes de qualquer outra consideração a respeito desses fatos e mesmo de louvar as atitudes de repúdio, é imprescindível registrar que, sob qualquer ponto de vista e de apreciação, tais atos, que, infelizmente, não são inéditos[4], são inaceitáveis e merecem a devida e exemplar responsabilização para que, tal como apontado pelas escolas universitárias envolvidas, se torne “um marco para o fortalecimento de uma cultura de respeito, equidade e inclusão”.

Não é preciso ser filólogo para saber que a palavra inclusão é polissêmica, intuição que é confirmada por uma consulta ao Houaiss, que, dentre seus vários significados, inscreve: relação entre duas classes tal que os elementos constitutivos de uma se encontram entre aqueles da outra e propriedade que possui um conjunto de ter todos os seus elementos contidos num outro conjunto. Embora um seja lógico e o outro, matemático, ambos integram o rol de definições de um substantivo feminino que tem ligação direta e imediata com o verbo incluir, que o mesmo dicionário aponta como sinônimo de juntar(-se), inserir(-se), e o define como fazer figurar ou fazer parte de um certo grupo, uma certa categoria de pessoas.

Como os exemplos históricos estão aí a nos provar, inclusão não é das tarefas mais simples. Embora mais violento e sangrento, tem sido mais usual excluir do que incluir e as superações de entraves não tem se dado senão por meio de ferrenhas lutas históricas que opõem classes e seus interesses e se arrastam por anos a fio. Quanto maior o ‘prêmio’ em disputa e maior, e mais relevante, a escassez dos bens disponíveis, mais renhida é a refrega e maiores os ressentimentos daqueles que se sentem tolhidos pela nova repartição. Não seria demais apontar que isso deriva de um entendimento de que esses veem a si mesmos como classe dominante, no sentido marxista-engelista, a qual se vê ameaçada na produção e disseminação de ideias e valores que, por sua própria posição, julgava universais e incontestáveis, dado ser condição sine qua non dessa classe apresentar seus interesses e valores “em termos ideais, [estando] obrigada a apresentá-las como as únicas racionais e universalmente legítimas”[5]. Isso é, segundo Marx e Engels, causa e efeito da marcha da História. Mas, ainda segundo os mestres teutônicos, o desafio a esses interesses, ideias e valores, não apenas traz em si o gérmen do próprio desafio à posição dominante, como exige da classe que almeja tal posição – mais expressivos quanto mais tenha sucesso em solapar a posição almejada – uma demonstração de que seus interesses representam o interesse comum de todos os membros da sociedade. É aí que nasce a classe revolucionária, que “aparece, desde logo, simplesmente pelo fato de defrontar com uma classe, não como classe, mas como força representante de toda a sociedade; surge como a massa inteira da sociedade contra a classe dominante”[6]. Ou seja, demanda a inclusão do maior número de pessoas na mesma frente de batalha como se fossem detentores de um mesmo interesse e não apenas uma massa de interesses distintos e não-colidentes ou contrapostos entre si.

Ao levarmos em conta as palavras usadas pelos estudantes da PUCSP para ofender os adversários, “pobres” e “cotistas”, e para não falar em um simples despeito por não terem alcançado a vaga que a cota reservou a outrem – o que diminuiria a importância do fato, sob os dejetos da aporofobia e, senão de um racismo estrutural canhestramente disfarçado[7], os de um claro elitismo, não há como não perceber um deslocado enviesamento classista. Como instrumentos de concretização de valores democráticos [e históricos], as políticas inclusivas levadas a cabo nas últimas décadas não apenas criam uma nova classe, no sentido weberiano do termo – a dos cotistas nas universidades, mas também transformam-se em alavancas que propiciam o desalojamento da pretensa classe dominante. E embora justificadas como elementos de uma reparação histórica mais ampla, o que tais políticas almejam com a inclusão de membros de outras ‘classes’ (ressaltando que, sob o influxo das lições de Max Weber, diferentemente de pobres, que o mestre alemão arrolada como exemplo de “classe proprietária negativamente privilegiada”, o critério racial não se presta a uma definição de classe) no seio dessa classe que se enxerga como pretensamente dominante, é que, a longo prazo, sejam geradas mudanças estruturais. E, pela reação gerada, tudo leva a crer que a escolha foi acertada.

No entanto, os estudantes que proferiram tais ofensas, futuros bacharéis da República – o que talvez seja causa, ou sintoma claro, da corrupção de seus valores intrínsecos – enganam-se ao se verem como uma classe dominante, pois, pela sua conformação, o que um estudo mais detido de suas condições econômicas nos permitiria esclarecer devidamente, assemelham-se mais a uma mera classe média situada entre uma “classe proprietária positivamente privilegiada”, como os diversos rentistas, e uma “classe proprietária negativamente privilegiada”, na qual se incluem justamente pobres e endividados, do que à daquele em posição de dominância. Segundo Weber, as classes médias “abrangem as camadas, de todas as espécies, que dispõem de propriedade ou qualidades de educação e daí obtém sua renda” [8]. São esses que, como profissionais liberais, entre eles os advogados, poderão integrar tanto uma “classe aquisitiva positivamente privilegiada” quanto uma “classe aquisitiva negativamente privilegiada” [9], mas não outra, quanto mais a dominante.

E a autoimagem como classe pode dizer muito sobre os comportamentos que expressam, especialmente os que dão vazão à raiva e ao descontentamento com a frustração social que sentem – que, como bem pontuam Eric Dunning e outros em estudo sobre o hooliganismo[10], encontram no Esporte a válvula de escape, pois, ainda segundo Weber, suas pretensões variam de acordo com o grupo ao qual pertencem. Uma classe aquisitiva positivamente privilegiada se vê legitimada a buscar monopolizar a “direção da produção de bens, no interesse dos fins lucrativos dos membros de sua classe” e a assegurar “suas possibilidades aquisitivas pela influência sobre a política econômica das associações políticas”[11]. Ou seja, exercendo um poder de influência sobre o Estado, buscam atuar no sentido de concentrar e monopolizar os bens e oportunidades disponíveis, promovendo, consequentemente, senão a exclusão dos demais, ao menos, restringindo-lhes o acesso. É compreensível o anseio para se ver e afirmar como classe dominante, pois, conforme Marx e Engels, a ela cabe ditar as regras do jogo. No entanto, os mesmos mestres alertam que não basta a mera vontade; é essencial que a consciência de classe esteja atrelada à realidade material.

Vistas sob outro ângulo, mas que reforçam o que se vem de apontar, suas atitudes corporificam exatamente aquilo que as políticas públicas de inclusão visam combater: a luta pela perpetuação do status quo. Ao colocar jovens pobres, pretos e periféricos no seio de instituições que outrora viam entre seus quadros apenas os rebentos da classe dominante – a aristocracia seja a das fazendas (a cafeeira, no caso paulista, a dos canaviais, no Nordeste, e a das estâncias, no Sul), a da indústria e, posteriormente, a do estamento burocrático – e servindo de incubadora à nova geração dominante com vistas a perpetuar sua tradição e locus, as políticas de discriminação positiva, como a das cotas raciais e sociais, almejam alterar as condições internas à classe, ou, quem sabe, ao pretenso estamento.

Lançando o olhar um pouco mais longe no passado, não demora para que nos deparemos com o velho bacharelismo que grassava entre a alta cúpula do Império Brasileiro, com os filhos da aristocracia de terras e, posteriormente, da incipiente indústria manufatureira e, mais adiante, a de farda, atravessando o oceano para estudar na Europa – quantos não foram os que se viciaram com os ares da vetusta biblioteca da Universidade de Coimbra e os que voltavam com os punhos de renda para assumirem postos na diplomacia brasileira? Somente a partir de 1827 – quando, por ordem e mando de D. Pedro I, foram criados os primeiros cursos universitários brasileiros dedicados ao Direito, dentre eles a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (o grêmio estudantil das Arcadas haure seu nome e com ele presta tributo à insigne data) – é que esse habitus começa a perder o sotaque e a afetação europeias, para impregnar-se de ares mais ao gosto do país recém independente, sem, contudo, se extinguir. Enquanto aos pobres negava-se educação básica, os bancos universitários continuavam a ser exclusividade das elites regionais.

É com Getúlio Vargas e a Aliança Nacional Libertadora e, posteriormente, com a Revolução de 1930 e o Estado Novo, que essa grande massa de marginalizados ascenderá e ganhará visibilidade. E isso vem no esteio de grandes mudanças estruturantes e estruturais. O país outrora eminentemente agrário se industrializa e as massas de camponeses, atraídas pelas necessidades da indústria nascente, chegam às cidades trazendo na bagagem outros anseios que não apenas emprego e comida. Getúlio e seu ministro, Francisco Campos, um tal Chico Ciência, serão os responsáveis por criar os primeiros cursos técnicos. Embora um diploma universitário continue a ser uma chave para postos-chave, especialmente nos cimos da burocracia estatal e de maior renda na iniciativa privada, tal mudança dispensa-o como único passe de acesso a um emprego com certa qualificação e elemento de integração à nova classe nascente, a do operariado urbano que, com o tempo, verá seus direitos assegurados pela CLT, pela criação do Ministério do Trabalho e ouras tantas medidas pouco palatáveis pela classe proprietária positivamente privilegiada de então – e até hoje, que o diga a discussão da jornada 6×1. São os netos dessa gente os que hoje entram nas universidades de elite por meio de ações afirmativas. Os longos e intensos primeiros 15 anos no poder contribuíram para a deposição de Getúlio por uma quartelada, mas a ousadia em abrir caminhos onde antes havia apenas muralhas feitas de privilégios de castas e famílias teve grande contribuição, pois, como não poderia deixar de ser, a reação se fez presente. O “Pai dos pobres” ousara demais ao regular as relações de trabalho e assegurar aos trabalhadores direitos tomados à classe proprietária, ao empresariado. Não demoraria para que o trabalhismo fosse visto como um homólogo do comunismo. A defesa dos direitos sociais não resiste à velha fórmula da ameaça vermelha, sempre a funcionar num país que não encara de frente seus fantasmas. Primeiro Getúlio, depois Jango, ainda que o próprio Gegê fosse um ferrenho anticomunista. A revolução não fica sem resposta, das mudanças germinam os reacionários, que o digam os arautos dos retrocessos recentes, especialmente em termos de garantias dos direitos das mulheres, e os insaciáveis golpistas de coturno.

Não deixa de ser sintomático que as diferenças se façam evidentes no seio do Esporte, campo em que, paulatinamente, as barreiras sociais, de classe e à raça vem sendo continuamente solapadas e deixadas para trás e onde brancos e negros, ricos e pobres, ocupam o mesmo campo. Há cem anos, o elitista Fluminense, clube apoiado pela família Guinle, usava pó de arroz para mascarar seus pruridos em permitir que negros jogassem o campeonato estadual. Quando o orgulho de classe fala mais alto, os princípios emudecem. As condições materiais, bem ao gosto marxista, desarmaram o idealismo hegeliano e as mudanças se impuseram contra a vontade das castas. Não demoraria muito para que o Brasil, que se jactava de sua Águia de Haia, viesse a se orgulhar também de Pelé.

Talvez a grande diferença agora seja que o lugar da política tenha cedido espaço para a violência que grassa como inço, de atos a palavras que já não são mais as de baixo calão, mas do despeito com o próximo e de uma deliberada cegueira que impede que se veja que estamos todos no mesmo barco, todos no mesmo banco de reservas à espera da hora de entrarmos em campo e termos nossa chance de mostrar a que viemos e que a luta por mais vagas nas universidades – cujo déficit atual é de quase 3 milhões[12] – é de todos e não apenas dos cotistas, sem jamais esquecer que a marcha da História segue seu curso, queiramos ou não, e o momento é de inclusão. A cada um cabe a escolha de cerrar fileiras com ela ou de permanecer nas arquibancadas a destilar raiva e a proferir impropérios, vendo-a então passar, ou ver-se atropelado. O tempo passa, as mudanças se impõem. Ele carrega consigo as veleidades. Lavra os sulcos onde as gerações plantam as sementes que germinarão e darão os frutos que as seguintes colherão. Por isso é que chamamos de marcha o desenrolar histórico.

Mas, independentemente da classe e da posição que nela ocupemos, não se deve esquecer que a vida humana e o convívio social são pautados por regras que, embora oriundas de diferentes esferas, nascem da interação entre elas e que se alteram mutuamente no curso e consoante a intensidade dessa interação. Fica então a dúvida de como interagirão os ofensores, se com respeito ou se perdidos na baixaria dos bacharéis.

Crédito imagem: Getty Images

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Escritor, Advogado da União, ex-Consultor Jurídico junto ao Ministério do Esporte

@pitagoras_dytz

[1] https://direito.usp.br/noticia/ea738c44042b-nota-de-repudio-contra-o-racismo-, acesso em 2 de dezembro de 2024.

[2] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/estudantes-da-puc-sao-demitidos-apos-caso-de-preconceito-contra-alunos-da-usp/, acesso em 2 de dezembro de 2024.

[3] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/puc-cria-comissao-que-pode-expulsar-alunos-por-preconceito-contra-estudantes-da-usp/, acesso em 2 de dezembro de 2024.

[4] Algo semelhante ocorreu em 2015, em Vassouras/RJ, envolvendo associações atléticas de universidades fluminenses: https://extra.globo.com/noticias/rio/atleticas-lancam-notas-de-repudio-atos-racistas-homofobicos-machistas-em-jogos-universitarios-16399857.html, acesso em 2 de dezembro de 2024.

[5] MARX, Karl; ENGELS, Friederich. A Ideologia Alemã, Feuerbach – A Contraposição entre as Cosmovisões Materialista e Idealista. Trad. Frank Müller. São Paulo: Martin Claret, 4ª reimp., 2011, p. 80.

[6] Idem.

[7] Vale salientar que embora, em si e por si só, cotista não represente uma ofensa, da forma e com o objetivo pretendido, não há como dar-lhe outra interpretação que não seja a que lhe confere uma conotação classista, elitista e racista, especialmente porque grande parte das políticas inclusivas levadas a cabo nas últimas décadas, como o PROUNI, leva em consideração critérios raciais.

[8] WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 1. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. 4ª ed. 4ª reimp. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2015, p. 200.

[9] Idem.

[10] DUNNING, Eric, MURPHY, Patrick e WILLIAMS, John. La violence des spectateurs lors des matchs de football: vers une explication sociologique. in Sport et civilisation, la violence maîtrisée. Paris: Fayard, 1994, p. 334-366.  

[11] WEBER, op. citada, p. 201.

[12] https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/29-milhoes-e-o-deficit-de-estudantes-no-ensino-superior/#:~:text=Os%20dados%20do%20Censo%20do,p%C3%BAblicas%20e%20privadas%2C%20o%20que, acesso em 2 de dezembro de 2024.

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