Estávamos na última coluna falando acerca da Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) que reconhece a autonomia esportiva. Afirmei que se trata de um ato internacional de observância obrigatória. Uma norma de Direito Internacional Público.
Do mesmo modo podemos assim classificar a Carta Internacional da Educação Física e do Esporte da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), ainda que não seja uma Resolução da AGNU, mas sim um ato internacional emanado de uma de suas agências especializadas.
Pois a Conferência Geral da Unesco, realizada em Paris de 3 a 21 de outubro de 2005, em sua 33ª sessão aprovou um dos mais importantes atos internacionais que se relacionam à nossa área, a Convenção Internacional contra o Doping no Esporte. Trata-se de uma norma típica de Direito Internacional Público, do chamado Direito dos Tratados, inclusive tendo sido ratificada internamente no Brasil por meio do Decreto Presidencial n° 6.653, de 2008. Desse modo, hoje tem força de lei ordinária em nosso país.
Podemos dizer, então, que somente a Convenção Internacional contra o Doping no Esporte da Unesco é obrigatória internamente no Brasil? A Resolução A/69/L.5 da AGNU (autonomia esportiva) não foi ratificada pelo Brasil e, assim, não seria oponível aos cidadãos brasileiros? A Carta da Educação Física e do Esporte da Unesco também padeceria da mesma tibieza hierárquica? Claro que não. O Brasil é um membro da comunidade internacional e deve respeitar os atos internacionais, ainda que não sujeitos à ritualística constitucional própria da internalização dos tratados no direito interno. Na verdade, isso depende mais do que reza o respectivo ato internacional ou do que dispõe o art. 49, I, da CF. A Convenção Antidoping da Unesco previa a ratificação por seus Estados membros, e no Brasil isso se dá por meio do Congresso Nacional (aprovação de decreto legislativo), com promulgação pelo presidente da República por meio de ato próprio (decreto).
Em não se tratando de atos internacionais que acarretem compromissos “encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (CF, art. 49, I) ou que sua própria disposição requeira ratificação, as normas internacionais são obrigatórias ao Brasil, mormente aquelas aprovadas pela Assembleia Geral da ONU.
Nesse sentido, chamo a atenção para uma passagem dos considerandos da mesma Resolução A/69/L.5 da AGNU (autonomia esportiva):
“Reconhecendo a Carta Olímpica e que toda a forma de discriminação é incompatível com o pertencimento ao movimento olímpico […]”
Reparem no texto. A Assembleia Geral, órgão máximo da ONU, reconhece a Carta Olímpica, verdadeira constituição do Comitê Olímpico Internacional (COI) e de toda a Pirâmide Olímpica. Reconhece porque a Carta Olímpica é uma norma de Direito Internacional Público? Não! A Carta Olímpica é expressão jurídica da autonomia do Movimento Olímpico, é um documento com força de norma obrigatória a todos os integrantes da Pirâmide Olímpica, mas não é uma norma de Direito Internacional. Ademais, é um fecho de abóbada normativo da Lex Sportiva. Portanto, trata-se de uma norma transnacional, pública, mas não estatal, global, mas não um ato internacional propriamente dito.
Assim, a ONU, ao reconhecer a Carta Olímpica, concorda, como faz na mesma resolução, com o caráter autônomo do esporte mundial, mas traz a norma transnacional para o ambiente do Direito Internacional Público.
Complicado? Na verdade, não. Recordem-se de que já falamos que os sistemas sociais se entrelaçam, que, como vimos no caso da Convenção Antidoping da Unesco, que a Lex Sportiva adota uma norma típica de Direito Internacional e que no Brasil sua validade se dá de acordo com o direito interno de celebrar tratados. Três sistemas se tocando: direito estatal brasileiro, Direito Internacional Público e Lex Sportiva.
Já no que concerne ao reconhecimento que a AGNU deu à Carta Olímpica, há uma absorção pelo Direito Internacional Público de uma norma própria da Lex Sportiva, de modo que todos os países membros da ONU se obrigam a ela por força do que dispõe o próprio ato internacional. Não se trata, porém, de uma desvirtuação da natureza jurídica da Carta Olímpica, que continua sendo uma norma da Lex Sportiva.
Esse fenômeno já vinha acontecendo por meio de acordos que tanto as Nações Unidas como os Estados nacionais individualmente vinham alinhavando com o COI e que dispunham acerca do respeito à Carta Olímpica. O Brasil, por exemplo, assim procedeu quando da apresentação de sua candidatura para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. Depois, o município do Rio de Janeiro assinou com o COI o “Host City Contract”. Ambos continham cláusula expressa quanto à observância das disposições da Carta Olímpica.
Sei que não se trata de algo tão simples de se entender, até mesmo porque enseja incursões na teoria do Estado, da soberania nacional etc. Porém, se passarmos a tentar visualizar o direito com menos rótulos, menos apego à territorialidade estrita, começarmos a entender o fenômeno da desterritorialização do direito, do pluralismo jurídico e da transnacionalização sistêmica, bem, aí as coisas ficam mais claras.
Para terminar, peço mais uma vez atenção ao trecho da Resolução da AGNU acerca da autonomia esportiva que transcrevi acima. A segunda parte daquele considerando diz que “toda a forma de discriminação é incompatível com o pertencimento ao movimento olímpico”. Há várias normas de Direito Internacional dos Direitos Humanos que tratam do esporte. Como ficaria, então, a relação do direito interno do Brasil com as normas internacionais que abordam o esporte enquanto direito fundamental? Trata-se de norma de status constitucional em nosso país? Vou tentar responder isso na nossa próxima coluna.