Search
Close this search box.

A cessão dos atletas nos períodos de convocação e a encruzilhada dos clubes brasileiros

Nos próximos dias começa a Copa América. A Eurocopa acabou de dar o seu pontapé inicial. O que na Europa é um momento de festas, congregação e de viagens dos torcedores para acompanhar suas seleções (o que é facilitado pelas menores distâncias e pelo oferecimento de meios de transporte mais eficientes e acessíveis), no continente americano, especialmente no Brasil, o momento é de preocupação por parte de clubes e torcedores.

Em primeiro lugar, o futebol de seleções não goza mais do prestígio de outrora, exceto nos períodos de Copa do Mundo. O torcedor médio é cada vez mais focado no futebol de clubes, que é aquele que, de fato, movimenta suas paixões. No mais, no Brasil a questão é agravada pelo fato de que a CBF, historicamente, não pretende ou não consegue organizar um calendário adequado que respeite as datas FIFA, paralisando suas competições. Como já trabalhamos em colunas anteriores, a raiz no problema está nos campeonatos estaduais, os quais consumem quase 4 meses do calendário nacional do futebol e “espreme” as competições mais importantes, mas, que, por questões políticas e eleitorais no contexto das Federações, não é devidamente endereçada. No Campeonato Brasileiro em curso, por exemplo, os clubes que cederam atletas para as seleções nacionais (não só a Brasileira) na Copa América ficarão cerca de 10 rodadas (!!) sem seus principais jogadores, prejudicando o mérito esportivo em mais de ¼ do campeonato. A luta das agremiações é literalmente por sobreviver a esse período[1]. O torcedor sequer consegue “viver” o momento da Copa América como o europeu faz com a Eurocopa, o que somente é possível dada completa paralisação do futebol de clubes.

Sob o ponto de vista legal e regulamentar, a FIFA estabelece no seu RSTP (Regulations on the Status and Transfer of Players), especificamente no anexo 1[2], a obrigatoriedade da cessão dos atletas para as convocações internacionais e todo o respectivo detalhamento, como o número máximo de jogos que podem ser disputados a cada janela internacional e a antecedência necessária para liberação dos atletas e o limite máximo de tempo para liberação dos mesmos para fins de retorno e reintegração aos clubes. O descumprimento de tais normas pode resultar em imposição de multa, futura redução do período de liberação dos atletas aos clubes e, em último caso, até a desfiliação da associação.

Para facilitar o planejamento das competições domésticas, a FIFA assume o compromisso de publicar as janelas de liberação internacional (datas FIFA) pelo período de 4 ou 8 anos. A FIFA também avoca para si os encargos trabalhistas durante o período de convocações e conta com um Programa de Proteção dos Clubes para o caso de os atletas sofrerem lesões durante o período de compromissos internacionais com as seleções. Na versão atual, que vigora até 2026, os clubes cedentes são indenizados caso a eventual lesão sofrida deixe o atleta fora de ação por mais de 28 dias consecutivos, sendo que o ressarcimento é baseado no salário fixo do jogador e não cobre gastos do tratamento médico, valendo tanto para o futebol profissional masculino quanto feminino. A compensação máxima é de 7,5 milhões de euros por jogador, desde que os atletas não tenham se apresentado às seleções já lesionados (mesmo que a lesão seja agravada).

No Brasil, a Lei Geral do Esporte, dando ainda mais relevo à autonomia das entidades desportivas e repercutindo a “convocação obrigatória”, estabelece, no art. 92, que a participação dos atletas profissionais em seleções será realizada conforme acordem as organizações convocadora e cedente. Também fica estabelecido que os encargos trabalhistas previstos no contrato de trabalho dos atletas serão indenizados pela respectiva seleção durante todo o período da convocação, que será estendida até a efetiva reintegração do atleta, considerando-se também o período de treinos e viagens. De qualquer sorte, segundo apurado e documentado pela imprensa, a CBF não vem indenizando os clubes[3]. Haveria uma espécie de acordo de cavalheiros em curso para que não ocorra a efetiva cobrança, já que a CBF é credora de muitos dos clubes e em certas situações deixa de cobrar taxas sobre a receita bruta das partidas disputadas nos torneios que organiza.

Como se nota, sob o viés legal e/ou regulamentar, há pouco o que os clubes possam fazer, devendo liberar seus atletas obrigatoriamente às seleções, sob pena de sofrerem punições da FIFA ou serem denunciados por infração ao art. 207 do CBJD, que estabelece a recusa em liberar os atletas para convocações como infração disciplinar. Mas os clubes podem induzir ou pressionar por mudanças. Como? Os mesmos deveriam encabeçar movimentos junto à FIFA para que esta não preveja em seus regulamentos privados não só a punição aos clubes que deixarem de ceder os atletas convocados, mas que também repercuta a possibilidade de desfiliar as Federações Nacionais que deixem de suspender suas competições nas janelas de liberação internacional. Se foi um criado um calendário internacional exatamente para não lesar os clubes, as associações nacionais precisam se enquadrar. Enquanto isso, ainda que haja risco de insucesso, os clubes podem criar repercussão, por exemplo, acionando os tribunais desportivos invocando o direito de não participar de competições durante as datas FIFA e, finalmente, buscando um mínimo de entendimento para a criação da liga nacional de clubes, que torne possível retirar a organização dos principais torneios nacionais dos tentáculos políticos das Federações. Mas, para tal, as agremiações precisam tomar a consciência de que uma liga de clubes vai muito além do que apenas negociar verbas de direitos televisivos. O momento é de ação efetiva. Os clubes brasileiros não deveriam precisar sobreviver às datas FIFA, mas sim ter seus os direitos respeitados. Que um dia o óbvio aconteça e não precisemos mais nos sentir como se estivéssemos pregando no deserto.

Crédito imagem: CBF

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] A necessidade de “sobrevivência” a esses períodos não é uma peculiaridade brasileira. De tempos em tempos, os clubes europeus também perdem seus atletas africanos e asiáticos, já que as respectivas competições continentais costumam ser disputadas durante o mês de janeiro, em pleno calendário europeu.

[2] https://digitalhub.fifa.com/m/6a0797ec77cbc02c/original/Regulations-on-the-Status-and-Transfer-of-Players-February-2024-edition.pdf. Acesso em 19/06/2024.

[3] https://oglobo.globo.com/esportes/por-que-cbf-nao-paga-clubes-por-convocados-selecao-o-que-acontece-quando-ha-lesoes-24735287. Acesso em 19/06/2024.

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.