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A construção do conceito de justa causa no âmbito do futebol internacional

No início dos anos 2000, diante da pressão da União Europeia e das crescentes demandas dos protagonistas do esporte, a FIFA emitiu o Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores (RSTJ)[1], uma normativa que visava promover o desenvolvimento do esporte, criando uma segurança jurídica para todos os seus membros.

Para isso, a entidade máxima do futebol estabeleceu regras globais e vinculativas a todos, que tratavam, principalmente, sobre a transferência de jogadores entre diferentes associações, a elegibilidade para participar do esporte organizado, a proteção dos menores e a relação entre clubes e futebolistas.

O principal desafio e objetivo dessa normativa era determinar bases mínimas, amparadas no Direito Suíço e em conformidade com o Direito Europeu, que pudessem garantir a estabilidade contratual, ou seja, que os contratos fossem cumpridos em sua totalidade.

Nesse sentido, a entidade suíça se inspirou em alguns princípios contratuais, como, por exemplo, o pacta sunt servanda (a vontade das partes, fixada em um contrato, deve ser cumprida), além da premissa de que o compromisso só pode ser resolvido após o término do prazo ou por mútuo acordo.

Com efeito, a FIFA instituiu como regra o cumprimento dos contratos, impondo mecanismos para garantir esse escopo principal, como a impossibilidade da terminação unilateral durante a temporada, sob pena de sanções esportivas a quem está terminando, ao clube (terceiro) que está induzindo a quebra contratual, bem como compensações financeiras que deverão ser pagar pelos infratores/indutores a parte prejudicada.

Entretanto, há uma exceção a estabilidade contratual, chamada justa causa. No caso da ocorrência dela, a parte que sofreu os efeitos da inexecução das obrigações poderia resolver o contrato, sem consequências de qualquer tipo (seja pagamento de indenização ou imposição de sanções esportivas). Por outro lado, quem foi inadimplente será responsável pelo pagamento de uma compensação financeira, sem prejuízo de uma sanção esportiva.

Apesar de ser de extrema importância para todos os componentes do mercado, o significado de justa causa e as condutas que dariam azo a esse tipo de terminação nunca foram esclarecidos pela FIFA em seu corpo normativo. A definição desse conceito foi sendo construída e aprimorada através das resoluções emitidas pela entidade suíça e pelo Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS).

Nesse contexto, como é uma entidade privada de Direito Suíço, a FIFA, bem como o TAS, também localizado em solo helvético, se inspiraram no Código de Obrigações do país[2] para nortear suas decisões. Esse dispositivo, mais precisamente no artigo 337, indica que, na existência de falta grave, os empregadores ou empregados podem resolver imediatamente o contrato.

Se entende como falta grave tudo aquilo que não permite, por razões de boa-fé, exigir do terminador que se tenha que continuar no contrato. Em outras palavras, a conduta deve ser tão grave, que culmina em uma quebra de confiança que não pode ser restabelecida, inviabilizando qualquer possibilidade de permanência da relação.

Ao contrário do Direito Brasileiro, que é respaldado pelos artigos 482 e 483 da CLT[3], e semelhante à normativa privada da FIFA, o ordenamento jurídico suíço não descreveu, detalhadamente, as possibilidades do empregador/empregado para resolver o contrato, devendo ser analisado de acordo com o caso concreto pelos órgãos decisórios da FIFA e do CAS. Contudo, ao longo dos anos, algumas mudanças no RSTJ ajudaram a aclarar quando seria dada a justa causa.

Em 2018, mediante a circular de nº 1625[4], adveio a alteração mais significativa do Regulamento, com forte influência da FIFPRO, uma espécie de organização representativa a nível mundial para jogadores profissionais. A entidade máxima do futebol emendou o artigo 14, que passou a contar com um segundo parágrafo, inseriu o artigo 14bis e modificou o conteúdo do artigo 17 (não será objeto de análise), juntando-se ao já presente artigo 15, todos intrinsecamente ligados ao conceito de justa causa e aos seus desdobramentos, tal como a fixação de compensação financeira e sanções esportivas aplicáveis.

Recentemente, a FIFA expediu um documento com comentários pertinentes a todos os artigos da RSTJ[5], em que compilou as mais importantes decisões, que criaram uma jurisprudência bem sólida, capaz de facilitar o entendimento de todas partes envolvidas no futebol. Passa-se, agora, a examinar cada artigo, expondo os principais pontos para que se tenha uma melhor compreensão do conceito de justa causa.

I. Artigo 14

Esse artigo introduz a ideia de que a estabilidade contratual só pode ser quebrada se houver uma violação suficientemente grave das obrigações contratuais por um dos polos e deve ser tomada sempre como o último recurso existente (ultima ratio).

Ressalte-se que, em comum acordo, os contratantes podem instituir as exemplificações de justa causa, porém, uma vez provocada por uma das partes, possivelmente irresignada com a terminação precoce, a FIFA pode mitigar ou considerar nula essa cláusula, flexibilizando-se, assim, o princípio do pacta sunt servanda, que não pode ser absoluto.

Isso porque, após analisar o caso concreto, podem concluir que ela é abusiva, autoritária ou que concede muito poder a um lado em detrimento do outro. Portanto, a Câmara de Resolução de Disputas pode entender que a conduta descrita no acordo de vontades não é capaz de gerar a justa causa.

Por conseguinte, a introdução do segundo parágrafo a esse artigo foi fundamental para tentar corrigir o que se via na prática. Um componente insatisfeito durante a relação, começava a agir deliberadamente de maneira abusiva, com o intuito de pressionar a parte contrária, afetada por tais atos, a terminar o contrato ou a mudar os termos contratuais.

Nos comentários ao Regulamento, foram trazidos à baila alguns comportamentos dos clubes/jogadores considerados abusivos, logo, capazes de ensejar a terminação por justa causa. As condutas abusivas dos clubes eram muito mais frequentes, como, por exemplo, quando colocavam o jogador para treinar separado do resto do elenco, quando proibiam a participação nos jogos e treinos, privavam do uso da fisioterapia ou sala de musculação, até quando havia uma ordem para o que atleta deixasse o apartamento fornecido pelo time ou devolvesse o automóvel de propriedade do clube.

Segundo a FIFA, para avaliar se a separação do atleta do resto do elenco era suficiente para provocar a justa causa, devem ser levados em conta diversos fatores, dentre os quais:

a) o motivo dos treinamentos longe do plantel (time B, juniores ou sozinho)

b) a duração dessa medida (permanente ou temporária)

c) se ocorreu durante um período de jogos oficiais

d) se o clube forneceu toda a estrutura, funcionários e equipamentos necessários para o treinamento do atleta

e) se o contrato de trabalho previa a possibilidade de treinamento com o time B ou se expressamente indicava que o futebolista deveria treinar pelo time principal

f) se o jogador continuou a receber os salários pactuados durante o afastamento

De outro modo, embora menos usuais, algumas condutas do jogador também podem ser consideradas abusivas, como, por exemplo, quando ele se recusa em participar dos treinamentos ou dos jogos com a equipe, com justificativas infundadas. É valido mencionar que, a título de ônus da prova, é primordial definir quem suscita a conduta abusiva, pois cabe a ele o dever de comprovar suas alegações.

Igualmente, ainda no campo sobre o que provocaria a justa causa, podemos exemplificar, ao longo da jurisprudência, os seguintes casos: quando o clube deixa de pagar devido a uma lesão, exclusão da possibilidade de terminação devido ao fraco rendimento esportivo e existência da possibilidade de terminação quando o clube não inscreve/retira a inscrição do jogador ou quando a equipe não consegue o visto de trabalho para que o atleta possa atuar no país. Para tanto, a FIFA estipula que um dos direitos fundamentais do desportista, além do direito ao recebimento da remuneração, é ter acesso aos treinamentos e poder competir nas partidas oficiais.

Por fim, a boa-fé entre as partes durante a relação contratual é muito importante na hora de estabelecer se houve ou não a justa causa. Nessa perspectiva, havendo um mau comportamento de uma parte, tais como a recorrência de atrasos na reapresentação ao clube na data marcada, uma sanção disciplinar imposta pela entidade, saída do jogador do país sem autorização ou a falha no retorno ao clube (“abandono” do lugar de trabalho), o outro polo da relação deve ser notificado ou comunicado, demonstrando a insatisfação do clube, antes da terminação contratual.

Não podemos olvidar que a existência da justa causa é uma medida excepcional, como último recurso, não podendo ser tomada de maneira abrupta. Sendo assim, exige-se uma transparência na comunicação e a adoção de outros meios menos gravosos antes de caracterizar-se a justa causa nessas situações mencionadas no parágrafo anterior.

II. 14bis

Este artigo, sem dúvidas, foi uma das inovações mais importantes do Regulamento, pois impôs o atraso no abono de salário, de dois meses ou mais, como justa causa para a terminação contratual. Foi uma reação ao comportamento negligente de alguns clubes, que persistiam em não efetuar os pagamentos no tempo estipulado.

Da mesma forma, foi uma tentativa de resguardar o princípio da estabilidade contratual e garantir um direito básico do futebolista, já que a maioria das disputas trabalhistas, entre clubes e profissionais eram – ainda são – relacionadas ao não pagamento ou ao atraso frequente do salário e de outras remunerações. Como não poderia deixar de ser, o maior número de terminações contratuais por justa causa também são referentes a esse tipo de problema.

Entretanto, para exercer o direito a resolução, faz-se necessário constituir o devedor (empregador) em mora, concedendo um prazo de ao menos 15 dias para o adimplemento da obrigação econômica.

A título de curiosidade, no ordenamento jurídico brasileiro, já estava previsto a possibilidade de rescisão indireta do contrato de trabalho no caso de atraso, total ou parcial, de salários ou direito de imagem no período igual ou superior a 3 meses. É o que preconiza o artigo 31 da Lei 9615/98[6], também conhecida como Lei Pelé.

III. Artigo 15

O artigo 15 prevê uma situação especial para a terminação precoce do contrato, idealizada justamente para assegurar a possibilidade competir em partidas oficiais, um direito fundamental do jogador já mencionado nesta crônica. Dessa forma, foi criado o conceito de justa causa esportiva.

Nesse caso, o empregador cumpre todos as obrigações contratuais pertinentes, porém o jogador tem direito a terminar o contrato por justa causa, uma vez que não entrou em campo em ao menos 10% de todos os jogos oficiais da equipe, desde que comunique em até quinze dias após a última partida oficial do time na temporada.

Ocorre que, todavia, o exercício desse dispositivo está sujeito a uma análise bem ampla de acordo com cada caso, pois deve preencher uma série de requisitos. Dentre eles, destaca-se que o jogador deve ser considerado um profissional estabelecido. Em outras palavras, todas as condições e contexto da sua carreira o levam a ter uma legítima expectativa em participar, de maneira regular, dos jogos oficiais de sua equipe.

Por isso, foram excluídos da aplicação dessa disposição os jovens que ainda não completaram o seu processo de formação ou que ainda estão em desenvolvimento. O RSTJ, no anexo 4, que trata sobre indenização por formação, em via de regra, estabelece que um jogador não pode ser caracterizado como totalmente treinado se não tiver chegado, ao menos, até os 21 anos, salvo demonstradas exceções. Do mesmo modo, o artigo 1 desse mesmo anexo, institui que a formação do desportista vai dos 12 até os 23 anos.

Portanto, podemos concluir que a aplicação desse mecanismo é bem restrita e ainda é pouco invocada pelos atletas para a terminação contratual. Essa escassez da utilização desse artigo, juntamente com a inexistência de um inadimplemento contratual, já que se trata de uma causa meramente desportiva, faz com que as indenizações pagas pelos clubes aos futebolistas, sejam minoradas pelos órgãos julgadores.

Conforme todo o exposto, a FIFA não quis se arriscar fornecendo uma lista com as definições de justa causa, pois, segundo a entidade, era praticamente impossível determinar todas as condutas potenciais que pudessem ser consideradas causa da rescisão, prematura e unilateral, de um contrato celebrado entre um jogador profissional e um clube. Anos depois, vemos que a escolha foi acertada.

Com o passar do tempo, a tecnologia vai mudando, as pessoas e o esporte vão evoluindo, as relações trabalhistas já não são mais as mesmas de antes e, por conseguinte, a quantidade de fatores capazes de gerar uma justa causa também vão se alterando.

O importante é que os órgãos decisórios e regulatórios do esporte estejam atentos para se adequarem às novas demandas e às novas realidades. A manutenção da estabilidade contratual deve permanecer como um princípio fundamental para o desenvolvimento da modalidade.

……….

[1] RSTJ – Reglamento-sobre-el-Estatuto-y-la-Transferencia-de-Jugadores-agosto-de-2021.pdf (fifa.com) – última consulta: 29.11.2021

[2] Código de Obrigações Suíço: Microsoft Word – 220.it.doc (admin.ch) – última consulta: 29.11.2021

[3] Consolidação das Leis do Trabalho – DEL5452 (planalto.gov.br) – última consulta: 30.11.2021

[4] Circular 1625/2018 FIFA – bmkwifiiyexkdnicpsip-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 30.11.2021

[5] Comentários ao RSTJ – Commentary-on-the-FIFA-Regulations-on-the-Status-and-Transfer-of-Players-Edition-2021.pdf – última consulta: 30.11.2021

[6] Lei 9615/98, Lei Pelé: L9615 – Consolidada (planalto.gov.br) – última consulta: 30.11.2021

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