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A contradição no arquivamento da notícia de infração apresentada por coletivo

Conforme noticiado pelo Lei em Campo, a Procuradoria do STJD arquivou a notícia de infração que pedia punição ao Flamengo por conta de gritos supostamente homofóbicos de seus torcedores durante o clássico contra o Fluminense, pela 34ª rodada do Campeonato Brasileiro, no dia 11 de novembro.

A justificativa para o arquivamento foi a de que o Grupo Arco Íris de Cidadania LGBT, que protocolou a notícia de infração, não é jurisdicionado da Justiça Desportiva.

É uma decisão que carrega em si uma contradição, já que em 2021 a notícia de infração protocolada por um outro coletivo, o Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ, foi aceita, processada e resultou em punição ao próprio Flamengo. O coletivo chegou a atuar no processo na condição de amicus curiae.

Para compreender melhor o tema, proponho aprofundarmos um pouco mais na figura da notícia de infração e na legitimidade para apresentá-la.

O artigo 74 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) prevê que que “qualquer pessoa natural ou jurídica poderá apresentar por escrito notícia de infração disciplinar desportiva à Procuradoria, desde que haja legítimo interesse, acompanhada da prova de legitimidade”.

A figura da notícia de infração disciplinar desportiva foi introduzida pela Resolução CNE n°29 de 2009, que extirpou do ordenamento jurídico o procedimento da queixa, antes previsto na redação do artigo 74 do CBJD. A referida mudança legislativa tornou a Procuradoria a titular da pretensão punitiva disciplinar na Justiça Desportiva, conforme exposição de motivos da Subcomissão de Relatoria da Comissão de Estudos Jurídicos Desportivos do então Ministério do Esporte.

Ou seja, a partir daquela mudança, a Procuradoria seria a única legitimada a iniciar um procedimento sumário (o mais comum) nos tribunais desportivos.

Há de se destacar que não era a intenção do legislador – e isso é claro na exposição de motivos – limitar o acesso à Justiça Desportiva, mas prestigiar a Procuradoria. A atual redação do caput do artigo 74 fala de “qualquer pessoa natural ou jurídica”, não havendo limitação na legitimidade para a apresentação da notícia de infração disciplinar desportiva aos jurisdicionados da Justiça Desportiva, listados no artigo 1º, §1º do CBJD[1].

É princípio basilar de hermenêutica jurídica aquele segundo o qual a lei não contém palavras inúteis: verba cum effectu sunt accipienda. Ou seja, as palavras devem ser compreendidas como tendo alguma eficácia. Não se presumem, na lei, palavras inúteis[2].

Assim como não há palavras inúteis, não há palavras ou expressões ausentes. É patente que fosse a intensão do legislador limitar a legitimidade para apresentar a notícia de infração aos constantes do artigo 1º, §1º do CBJD ele assim o faria de forma gritante, incluindo tal previsão no artigo 74.

Pelo contrário, porém, a redação do caput do artigo 74, como mencionado, confere legitimidade para apresentar a notícia de infração de forma extremamente ampla ao prever legitimidade de “qualquer pessoa natural ou jurídica”.

Ao arrepio da previsão da norma, e como restou cristalino na decisão recente de não aceitar a notícia de infração protocolada pelo Grupo Arco Íris de Cidadania LGBT, não há entendimento firmado no STJD sobre a legitimidade do torcedor para apresentar a notícia de infração disciplinar desportiva.

Ressalta-se que, por muito tempo o Tribunal se posicionou de forma contrária à legitimidade do torcedor, sustentando sua suposta ilegitimidade sob o fundamento (este expresso no Processo n° 0032/2019) de que “o Estatuto do Torcedor (Lei Federal N° 10.671/2003) prevê meios próprios, através da Ouvidoria, de comunicação dos torcedores com as autoridades esportivas organizadoras das competições. De acordo com este entendimento, o Ouvidor da competição, dentre outros legitimados, mediante provocação dos torcedores poderá, caso entenda pertinente, noticiar eventual infração disciplinar aos Tribunais de Justiça Desportiva[3].

Sob este argumento e neste cenário, portanto, o torcedor se manifestaria por meio da Ouvidoria e esta, se assim entendesse, teria a legitimidade para formular uma notícia de infração a ser apresentada ao Tribunal. A Procuradoria analisaria a notícia de infração e, se entendesse pertinente, ofereceria a denúncia e iniciaria o processo desportivo.

Ocorre que, com a publicação da nova Lei Geral do Esporte, Lei N° 14.597/2023, o Estatuto do Torcedor foi revogado e as disposições que versavam sobre a figura da Ouvidoria não estão na nova lei.

De qualquer forma, ainda que exista a figura do Ouvidor da competição, não parece ser um acesso simples à Justiça Desportiva do ponto de vista do torcedor, ao total arrepio do previsto no caput do artigo 74 que, reitera-se, não limita a legitimidade para a apresentação da notícia de infração disciplinar desportiva aos jurisdicionados da Justiça Desportiva.

Mas, conforme mencionado no início deste artigo, a ilegitimidade do torcedor para apresentar a notícia de infração foi confirmada em decisão de 2021 que puniu o Flamengo por infração ao artigo 243-G por meio de processo iniciado por denúncia sustentada na notícia de infração apresentada pelo Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ (Processo n° 0978/2021)[4], que inclusive atuou no processo na condição de amicus curiae, como também frisado.

No relatório do acórdão[5], o douto auditor relator afirma:

Em relação ao 1º denunciado (Clube de Regatas do Flamengo), consta da denúncia que em 27 de setembro de 2021 foi apresentado expediente na Secretaria deste STJD subscrito pelo Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ – “Notícia de Infração” – dando conhecimento de atos contrários a moral e à disciplina desportiva que teriam ocorrido no evento e que não foram relatados na súmula da partida.

Há de se destacar que, naquela ocasião – assim como o ocorrido durante o clássico Flamengo x Fluminense, pela 34ª rodada do Campeonato Brasileiro, no dia 11 de novembro – não houve relato em súmula. A denúncia foi apresentada com base na notícia de infração, o que é perfeitamente possível, já que nem só de súmula vivem as denúncias. Há outras formas de basear a denúncia: vídeos, fotos, depoimentos, outros documentos; de fato, todos os meios legais, ainda que não especificados no CBJD, são hábeis para provar a verdade dos fatos alegados no processo desportivo, conforme disposto no artigo 56 do CBJD.

Agiu bem o STJD na ocasião na qual legitimou o torcedor para apresentar a notícia de infração, já que, além de observar o previsto no artigo 74 do CBJD, traz o torcedor como aliado do Tribunal na defesa da ordem jurídica e a disciplina desportiva.

Crédito imagem: STJD/Divulgação

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[1] 1º Submetem-se a este Código, em todo o território nacional: I – as entidades nacionais e regionais de administração do desporto; II – as ligas nacionais e regionais; III – as entidades de prática desportiva, filiadas ou não às entidades de administração mencionadas nos incisos anteriores; IV – os atletas, profissionais e não-profissionais; V – os árbitros, assistentes e demais membros de equipe de arbitragem; VI – as pessoas naturais que exerçam quaisquer empregos, cargos ou funções, diretivos ou não, diretamente relacionados a alguma modalidade esportiva, em entidades mencionadas neste parágrafo, como, entre outros, dirigentes, administradores, treinadores, médicos ou membros de comissão técnica; VII – todas as demais entidades compreendidas pelo Sistema Nacional do Desporto que não tenham sido mencionadas nos incisos anteriores, bem como as pessoas naturais e jurídicas que lhes forem direta ou indiretamente vinculadas, filiadas, controladas ou coligadas

[2] Cf. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 8a. ed., Freitas Bastos, 1965, p. 262

[3] Disponível em https://tjdam.com.br/site/arquivos/download/arqeditor/arquivamento%20de%20medida%20inominada%20extincao%20do%20merito.pdf

[4] PROCESSO Nº 0978/2021 – Jogo: Flamengo (RJ) x Grêmio (RS) – categoria profissional, realizado em 15 de setembro de 2021 – Copa do Brasil – Profissional – Denunciados: Clube de Regatas do Flamengo, ( CLUBE ), Flamengo-RJ, incurso no Art. 243-G do CBJD . – AUDITOR RELATOR DR(A). FERNANDO MARQUES DE CAMPOS CABRAL FILHO

[5] Disponível em https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202201/20220125122940_635.pdf

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