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A Copa do Mundo bienal e a implosão do sistema

Em maio do ano passado, no Congresso da FIFA, realizado de maneira remota, foi apresentada uma proposta que promete impactar o futebol mundial. A Copa do Mundo, masculina e feminina, passaria a ser realizada a cada dois anos, em vez dos tradicionais quatro anos[1]. Contudo, a sugestão não chega a ser surpresa, pois a entidade máxima do futebol já vem acenando com essa possibilidade há bastante tempo.

Nesse sentido, é válido lembrar que a FIFA já havia implementado uma mudança radical no número de participantes, passando de 32 para 48, que entrará em vigor a partir da edição de 2026. Com isso, se garantiria o acesso a maior competição do planeta para mais seleções, aumentando-se o número de jogos, logo, gerando mais arrecadação à entidade organizadora e, consequentemente, movimentando a economia do país sede.

Com efeito, a necessidade de globalização e expansão do esporte são algumas das justificativas para a proposta da Copa do Mundo bienal. No entanto, apesar desse formato, tanto em relação ao número de participantes quanto a periodicidade, ser mais inclusivo, essa modificação poderá provocar a implosão do futebol. Em outras palavras, o próprio sistema estaria se alimentando dele mesmo, uma autofagia altamente danosa à modalidade.

A FIFA intenta proporcionar que mais seleções possam chegar até o Mundial e que mais países possam sediar o evento, levando o esporte para lugares até então não explorados. Todavia, é duvidoso o legado e a sustentabilidade da competição nesses lugares onde o futebol não é tão praticado, uma vez que é gasto um valor muito alto para construção de estádios, que, após a Copa, ficam subutilizados, como ocorreu com a África do Sul[2] e até aqui no Brasil[3]. Os custos de manutenção exacerbados ficam de herança para o governo, que, como é sabido, tem outras prioridades.

Além disso, durante os estudos que antecederam a proposta, a reclamação dos clubes sobre a obrigatoriedade de liberação dos jogadores para as seleções, catalisado pelo calendário afetado pela pandemia, foi um elemento essencial para que fosse incluída a sugestão da redução das Eliminatórias.

Nesse contexto, é fundamental explicar o modelo vigente das partidas internacionais, conhecidas popularmente como data FIFA. Os clubes, através do artigo 1º do anexo 1 do Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores (RSTJ)[4], são obrigados a liberar os jogadores para suas respectivas seleções para a disputa das competições que figurem no calendário internacional, emitido pela FIFA.

Atualmente, salvo as exceções trazidas pela pandemia, se empenha cinco meses por ano para a realização desses jogos. Cada data FIFA representa um período de nove dias, onde geralmente são feitas, no máximo, duas partidas. Depois disso, os futebolistas retornam as suas equipes.[5]

Inicialmente, a ideia da entidade suíça era destinar um ou dois meses no ano exclusivamente para as seleções, o que diminuiria o número de datas, mas acrescentaria peso e importância aos jogos e também diminuiria a quantidade de viagens dos atletas, principalmente aqueles que atuam em outros continentes. A propósito, as Eliminatórias sul-americanas passariam de 18 jogos para somente 8.

Não obstante a tentativa de democratizar o esporte, esse novo formato pode ter justamente o efeito contrário. Isso porque, diminuindo o número de partidas das eliminatórias e ampliando o número de vagas para um Mundial implicaria em um aumento de período ocioso para aproximadamente 75% das federações nacionais, posto que as 48 vagas da Copa do Mundo ainda estão longe das 211 associações que compõem a FIFA.

Sob esse viés, essa inatividade forçada ou redução dos jogos contradiz o argumento de evolução do esporte e de levar a modalidade para mais países. Da mesma forma, não podemos olvidar que o público dos países não classificados seria prejudicado sem os jogos da sua seleção, perdendo o contato e identificação com o esporte. É necessário ressaltar o papel que exerce um ídolo nacional, jogando pelo seu país, que é capaz de multiplicar a quantidade de praticantes, principalmente jovens, da modalidade, o que assegura o futuro do futebol.

Por outro lado, o lado econômico, sem dúvidas, adquire destaque. Uma das apostas da FIFA para o desenvolvimento do esporte é o aumento das receitas, que chegaria até as Federações. Para tanto, a entidade suíça estima um incremento na arrecadação de 3,9 bilhões de euros, sendo destinados a cada associação o valor de 16,8 milhões de euros, pagos em quatro anos, se aprovado o novo modelo. Outrossim, seria criado um fundo de solidariedade que dedicaria cerca de 14 milhões de euros a cada Federação[6].

Por último, fortaleceria consideravelmente o programa de desenvolvimento, batizado pela FIFA Forward, que converte os ganhos do Mundial para a ajuda ao esporte, concedendo apoio econômico às associações para o fomento da modalidade, para a prática do futebol de base, educação, crescimento do futebol feminino, principalmente para aqueles membros que têm recursos limitados.[7]

Ainda sobre os países mais necessitados, o presidente da FIFA, Gianni Infantino, sugeriu, sem embasamento, que o novo formato contribuiria para diminuir o número de refugiados, uma vez que a entidade daria novas oportunidades ao povo africano. Sendo assim, se evitaria as migrações desesperadas, que somente no ano passado culminaram em mais de 1.315 mortes no Mar Mediterrâneo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).[8]

Com federações nacionais ávidas por mais receitas, devido a queda brutal gerada pela pandemia, obviamente que o novo formato ganhou muitos adeptos, dentre eles, a Confederação Africana de Futebol (CAF)[9]. Em contrapartida, esse modelo também recebeu oponenentes muito fortes, como, por exemplo a Conmebol[10] e a UEFA, as principais confederações do mundo, além da FIFPRO, espécie de sindicato internacional dos jogadores e até o Comitê Olímpico Internacional (COI).

Baseada em um estudo externo, a UEFA[11] se posicionou contra o Mundial a cada dois anos ao afirmar que não teria sustentabilidade e traria efeitos muito danosos no âmbito do esporte e das competições. Esse modelo de jogos internacionais poderia expor as ligas nacionais a períodos muito longos de inatividade, principalmente aquelas que, em decorrência do inverno rigoroso, devem parar por um mês. Isso seria ruim esportivamente para os campeonatos e para os jogadores não convocados, que, como se sabe, são a maioria, já que em uma convocação vão geralmente 20 jogadores.

Do mesmo modo, esse novo calendário prejudicaria o desenvolvimento dos jovens, que teriam menos datas nas seleções de base e oportunidades para ascender à seleção principal. Além da parte esportiva, o impacto também seria sentido nos cofres da UEFA e das Ligas, que deixariam de arrecadar em suas competições cerca de 8 bilhões de euros, entre queda no valor dos patrocínios, de bilheteria, dos direitos de televisão em função da perda de datas[12] e da possível supressão dos campeonatos nacionais.

Por fim, alega que os jogadores serão os principais prejudicados, pois o objetivo inicial de aliviar a carga do calendário esbarra na duplicação das fases finais, com o aumento do número de participantes e na frequência de dois anos, o que faria com que cada temporada terminasse com uma Copa do Mundo ou um Campeonato continental importante (Europeu, Liga das Nações, Copa América, etc). Ato contínuo, aduzem que essas competições de tamanha intensidade não podem ocorrer anualmente, posto que são muito exigentes, o que levaria a exaustão mental e física dos futebolistas.

A FIFPRO compartilha da mesma ideia e cumpre o seu dever de proteger a classe. Sendo assim, defende que o nível técnico e qualidade do espetáculo dependem da saúde e o bem-estar do atleta, o que teria sido deixado de lado pela FIFA ao propor esse novo calendário. Ademais, pontua que esse novo formato pode desestimular os investimentos nas pequenas e médias ligas e que a discussão sobre o futebol feminino devia estar apartada do contexto do masculino, resguardando a sua particularidade.[13]

Ocorre que, entretanto, não podemos isolar o futebol do sistema piramidal do esporte e do contexto do movimento olímpico. Preocupado com as consequências de uma Copa do Mundo a cada dois anos, o COI exigiu uma discussão mais ampla sobre o tema e centrou as críticas em três tópicos: o efeito em outros esportes, que teriam seus principais eventos nas mesmas datas, a igualdade de gênero, já que prejudicaria a promoção do futebol feminino, e o bem-estar dos atletas. [14][15]

A reação das entidades irresignadas ganhou mais força e promete novos desdobramentos com a aproximação da Conmebol e a UEFA, que possuem todos os campeões mundiais e as seleções mais fortes do planeta. Nesse sentido, com o vazio deixado pelo fim da Copa das Confederações e existência de um Mundial de Clubes fragilizado, elas já confirmaram uma partida[16]  entre o vencedor da Copa América com o vencedor da Eurocopa, bem como planejam a volta do antigo Mundial Interclubes, entre o campeão da Liga dos Campeões e o da Libertadores[17].

Tudo isso ganharia mais corpo com o plano de acrescentar as seleções sul-americanas na já bem sucedida Liga das Nações[18], fazendo um torneio com algumas das principais potências mundiais, que promete rivalizar com a FIFA e fornecer um aumento exponencial de receitas para ambas confederações.

Dessa forma, se atenderia uma demanda dos sul-americanos, que ultimamente tinham muita dificuldade em jogar contra os europeus, tendo em vista o comprometimento das datas em torneios/partidas entre as próprias seleções europeias. Destaca-se, no entanto, que essa possível competição não ampliaria o número de partidas do atual calendário, motivo maior que as entidades visam tutelar.

Essa união seria muito importante para o desenvolvimento da modalidade nos dois continentes. Um confronto de ideias e de estilos de jogo que conduziriam as seleções a uma evolução e ainda representa um novo atrativo aos torcedores. Afinal, quem não gostaria de ver um clássico mundial, com seleções campeãs, o que normalmente ocorreria a cada década ou até mais, em partidas oficiais mais frequentes? Nesse ponto, os argumentos se assemelham aos da FIFA para a modificação da Copa do Mundo, porém seria válido e justo com as seleções excluídas?

Sem embargo, a questão não é tão simples e deve encontrar a figura da FIFA como o seu principal obstáculo. Isso porque, balizada em seu Estatuto[19], mais precisamente nos artigos 71 e 73, que exigem a autorização da entidade máxima do futebol, a FIFA pode impedir a realização desse tipo de torneio.

Igualmente, uma forma menos explícita de boicote seria a autorização, mas não a inclusão das datas no calendário internacional. Ou seja, os clubes não seriam obrigados a liberar seus respectivos atletas para as suas seleções nacionais nessas datas, como ocorre com as Olimpíadas, por exemplo. A competição praticamente já nasceria morta e tenderia ao completo fracasso.

Novamente, após a discussão da Superliga Europeia, o sistema parece implodir com conflitos entre os próprios membros, em virtude da busca por mais protagonismo e arrecadação. Qualquer discussão sobre o rumo da modalidade deve abraçar todos os players que compõe o esporte, sob pena de se tornar ilegítima ou em desacordo com a realidade.

Conforme todo o exposto, além de não ter escutado todos as partes até o momento, a proposta de uma Copa do Mundo bienal traria mais malefícios do que benefícios para a maioria dos membros FIFA, seja jogadores, excluídos ou não das convocações, sobretudo os jovens, aos clubes, as pequenas e médias ligas e até outros esportes.

O futebol vai muito mais além das quatro linhas e precisa cumprir à risca o título de esporte mais democrático do planeta, para que ninguém seja prejudicado por uma medida que visa proporcionar um desenvolvimento questionável para poucos, excluindo o restante. Decerto, apenas 23 convocados e 48 associações não podem e não devem prevalecer diante de milhões de profissionais e de mais de 211 federações.

Crédito imagem: Fifa

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[1] FIFA estudia que el Mundial se juegue cada dos años | Marca – última consulta: 01.02.2022

[2] Dez anos depois de “sua” Copa do Mundo, futebol sul-africano tem altos e baixos – 11/06/2020 – UOL Esporte – última consulta: 01.02.2022

Um ano depois da Copa, estádios da África do Sul amargam prejuízos | globoesporte.com – – última consulta: 01.02.2022

[3] Copa: Prejuízo de ‘elefantes brancos’ já supera R$ 10 milhões – BBC News Brasil – última consulta: 01.02.2022

[4] RSTJ – Reglamento-sobre-el-Estatuto-y-la-Transferencia-de-Jugadores-agosto-de-2021.pdf (fifa.com) – última consulta: 01.02.2022

[5] O plano da Fifa para diminuir as Eliminatórias e datas de jogos de seleções – 03/07/2021 – UOL Esporte – última consulta: 02.02.2022

[6] FIFA promete 19 millones de dólares a cada federación si se juega el Mundial cada dos años (msn.com) – última consulta: 02.02.2022

[7] Programa de Desenvolvimento FIFA Forward – FIFA – última consulta: 02.02.2022

[8] Presidente da Fifa sugere que Copa a cada dois anos diminuiria número de refugiados – 26/01/2022 – Esporte – Folha (uol.com.br) – última consulta: 02.02.2022

[9] África declara apoio unânime a projeto de Copa do Mundo a cada 2 anos (uol.com.br) – última consulta: 02.02.2022

[10] Conmebol se diz contra a Copa do Mundo a cada dois anos (terra.com.br) – última consulta: 02.02.2022

[11] Un estudio cuestiona el Mundial cada dos años y el cambio del calendario | Marca – última consulta: 02.02.2022

[12] Copa do Mundo a cada dois anos daria prejuízo de R$ 50,8 bilhões por temporada às grandes ligas, diz relatório – Jornal O Globo – – última consulta: 02.02.2022

[13] FIFPRO, en contra del Mundial cada dos años (mundodeportivo.com) – última consulta: 02.02.2022

[14] Preocupado com Copa do Mundo a cada dois anos, COI pressiona Fifa | Esporte | O Dia (ig.com.br) – última consulta: 02.02.2022

[15] El COI, preocupado por el impacto del Mundial bienal (mundodeportivo.com) – última consulta: 02.02.2022

[16] Conmebol e Uefa anunciam ‘finalíssima’ entre Argentina e Itália em junho de 2022 (msn.com) – última consulta: 02.02.2022

[17] Conmebol e Uefa encaminham volta do antigo Mundial de Clubes – Notícias – Terceiro Tempo (uol.com.br) – última consulta: 02.02.2022

[18] Uefa e Conmebol estudam criação de Liga das Nações intercontinental com oito seleções, diz site – Jornal O Globo – última consulta: 02.02.2022

[19] Estatuto da FIFA – azwxwekfmx0nfdixwv1m-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 02.02.2022

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