Frustração. Assim se descreveu o sentimento geral em relação ao Grande Prêmio da Bélgica de Fórmula 1, “disputado” há algumas semanas. As expectativas eram altas, por diversos fatores: disputa intensa pela liderança do campeonato, circuito tradicionalíssimo que costuma oferecer bons espetáculos e previsão de pista molhada que usualmente torna as corridas mais imprevisíveis e atrativas. Mas faltou combinar com São Pedro, pois a tão desejada água acabou por cair mais do que o desejado.
A sessão de classificação, no sábado, já mostrara os caprichos de uma pista molhada. George Russell levou sua Williams a uma primeira fila no grid de largada pela primeira vez em alguns anos. Por outro lado, Lando Norris, cotado como candidato à pole position, parou no muro (sem lesões, felizmente!). Aliás, a batida de Norris já levantara a discussão sobre a necessidade de interrupção do treino, justamente devido às condições perigosas da pista; mas, ainda assim, a sessão foi concluída, após o arrefecimento da chuva.
Já no domingo, não houve jeito. Um temporal incessante atrasou a largada em mais de três horas. E, quando se tentou dar início à corrida, a chuva se mostrou forte demais e a direção de prova a interrompeu após apenas poucas voltas, percorridas atrás do safety car. Se para quem queria assistir de casa já ficou o gosto amargo, imagine para os torcedores presentes no autódromo, que esperaram por horas a fio e, afinal, voltaram para casa debaixo de chuva e sem ter assistido a uma corrida de verdade.
Essa situação inusitada nos remete necessariamente ao direito. Por que foram percorridas essas poucas voltas atrás do safety car? E como foi distribuída a pontuação da etapa? Poderíamos adentrar aqui também em questões comerciais e contratuais envolvendo a realização do evento (que certamente contribuíram para que se aguardasse por tanto tempo na expectativa de ser possível realizar a corrida), mas por hoje vamos nos ater aos aspectos da Lex Sportiva.
A provável explicação para a escolha da direção de prova se encontra no artigo 6.5 do Regulamento Desportivo do Campeonato Mundial de Fórmula 1. Ali se determina que, caso uma corrida seja suspensa e o líder tenha completado “duas voltas ou menos”, a etapa não distribui pontos para os mundiais de pilotos e de construtores; se o líder completar “mais de duas voltas”, mas menos do que 75% da distância total prevista para a prova, os pontos são atribuídos pela metade (por exemplo, o vencedor, ao invés de ganhar 25 pontos, ganha apenas 12,5). O que se comenta publicamente é que, diante da inviabilidade de haver competição devido às condições climáticas, a direção de prova teria iniciado formalmente a corrida com o safety car na pista (como, aliás, autoriza o mesmo Regulamento) e aguardado que se percorresse a quantidade mínima de voltas necessária para que a prova fosse considerada como realizada – com a distribuição dos pontos pela metade.
Ainda assim, há questionamentos. O resultado oficial da prova, divulgado no site da própria Fórmula 1, indica que os pilotos teriam completado apenas uma volta, mas uma nota de rodapé informa que não se fez referência à volta de nº 2 devido ao disposto no artigo 51.14 do Regulamento: se uma corrida suspensa não pode ser reiniciada, o resultado final é aquele obtido no fim da penúltima volta antes daquela em que a suspensão ocorreu.
Mas, afinal, não seria necessário que o líder completasse “mais de duas voltas” para eu houvesse pontuação? A mesma nota de rodapé tenta esclarecer: o líder completou a linha de controle três vezes, e isso seria suficiente para cumprir essa condição. Trata-se de uma interpretação possível, mas passível de debate. Se o artigo 6.5 dispõe que não há pontuação quando se completam apenas “duas voltas ou menos”, é plenamente razoável interpretar que se fazia necessário concluir a terceira volta – afinal, qualquer fração inferior a isso equivale a completar duas voltas (ou menos).
Controvérsias à parte, fato é que o próprio presidente da FIA reconheceu a necessidade de promover ajustes no Regulamento Desportivo da Fórmula 1. Nada mais natural, após um episódio excepcional que demandou decisões difíceis e exigiu que se levasse ao extremo a capacidade de interpretar o regulamento.
Esse episódio revela um aspecto interessante da prática do direito: os desafios ao redigir normas. Seja no caso de regulamentos ou mesmo se tratando de contratos, o mais complexo dos exercícios é justamente tentar prever ocorrências futuras e contemplá-las da melhor forma possível, ou ao menos construir disposições que permitam ao operador da norma encontrar soluções justas e razoáveis para lidar com situações imprevistas. Não por acaso, é comum que contratos e regulamentos passem por um processo contínuo de evolução, pelo qual se alteram, excluem e/ou criam normas em decorrência do que a experiência prática revela ser necessário.
Esta é a situação em que se encontra hoje a FIA. O GP da Bélgica apresentou variáveis que até então provavelmente não haviam sido cogitadas pelos responsáveis pela elaboração do regulamento, o que ampliou a margem de controvérsias sobre as decisões tomadas pela direção de prova. Logo, nada mais natural do que usar esse episódio como base para a construção de novas disposições, capazes de oferecer respostas mais adequadas a problemas semelhante. E, esperamos, capazes também de evitar que o público se frustre novamente com corridas que terminam (de direito) sem nem sequer começar (de fato).