Por Leonardo Herrero Domingos
A semana seguinte ao dia 18 de abril ficará marcada por gerar uma convulsão no mundo do esporte. Isso, pois, doze dos clubes de futebol mais ricos — Internazionale Milano, AC Milan, Juventus FC, Liverpool FC, Chelsea FC, Arsenal FC, Tottenham Hotspur, Manchester City, Manchester United, Atlético de Madrid, FC Barcelona e Real Madrid CF — manifestaram o desejo de criar uma competição que reuniria apenas a elite do futebol europeu mesmo sem o aval da FIFA, UEFA e de diversas ligas nacionais europeias. Esse torneio contaria com a presença de mais oito times sendo que, dentre estes, mais três clubes ocupariam a posição de fundadores e cinco outros seriam aceitos anualmente por meio de um processo classificatório. Trata-se da Superliga Europeia (ESL).
Após o anúncio, jogadores e ex-jogadores de futebol se manifestaram. Até mesmo os torcedores de times rivais se uniram para condenar o surgimento de uma competição que existiria à margem do sistema FIFA. O sentimento da maioria era uníssono: um mix de raiva e indignação. Nesse cenário de movimentações sociais contrárias ao surgimento da Superliga, bem como pela falta de explicações plausíveis por parte de seus clubes fundadores, os dissidentes do sistema FIFA não viram outra saída senão dar um passo atrás no projeto, suspendendo a nova liga.
Não seria exagero apontar que essa lide que vem se desenhando tem potencial para se tornar a maior batalha jurídica da história do futebol, superando até mesmo o simbólico caso Bosman. Isso porque, apesar de suspensa e rechaçada pelos fãs do futebol, a Superliga Europeia se mantém à frente no placar contra FIFA e UEFA, dado que o 17º Tribunal Comercial de Madri proibiu que qualquer organização tente barrar, punir, restringir ou condicionar o avanço da Superliga. Tal cenário escancarou uma a Guerra Fria entre os 12 clubes de futebol mais poderosos do mundo e as entidades UEFA e FIFA, conflito este que mantém no meio do fogo cruzado o futebol e seus fãs como reféns.
A notícia da criação da ESL abalou o mundo do futebol e também o de várias indústrias que gravitam em sua órbita, principalmente a de jogos eletrônicos. Afinal, três dos games mais populares do mercado — FIFA, PES e Football Manager — construíram seu sucesso em volta do ambiente futebolístico e, inclusive, partilham do mesmo mercado consumidor dessa modalidade esportiva. Por isso, os fãs de esports já demonstram preocupação sobre qual seria o futuro dos jogos de futebol, dado que a criação da Superliga Europeia ensejaria mudança não só no conteúdo desses produtos, mas também alterações no que tange aos licenciamentos e estrutura das competições europeias. Decerto, a criação de uma Superliga afetaria drasticamente o mundo do futebol virtual que, com certeza, teria de ser reformulado para reproduzir a ausência dos principais craques da modalidade.
Apenas para que o leitor tenha ciência, é importante que ressaltemos o papel da FIFPro como um dos agentes responsáveis por garantir o entretenimento de milhões de pessoas que consomem deste segmento do mercado de jogos eletrônicos. A FIFPro — organização mundial que representa os atletas profissionais de futebol — adquire os direitos de imagem dos jogadores ao redor do mundo por meio dos sindicatos nacionais de atletas dessa modalidade e, em seguida, os disponibiliza para alguns players da indústria de games, tais como a Eletronic Arts, a Konami e a Sports Interactive. Sem essa associação, provavelmente muitos de nós não teríamos a oportunidade de jogar com nossos jogadores e clubes favoritos em momentos de lazer, muito menos de aproveitá-los nas competições de esports.
Superada essa questão, passamos a mergulhar nas consequências da Superliga nos jogos eletrônicos de futebol. Primeiramente, destacamos a posição delicada em que se encontra a desenvolvedora Eletronic Arts (EA), até porque seu produto mais popular de futebol compartilha do mesmo nome que a entidade internacional reguladora desse esporte. No ponto, o sucesso da franquia FIFA gira em torno do Ultimate Team, modo no qual os jogadores podem criar times com cartas que representam jogadores de futebol. Logo, a partir do momento em que esses clubes fossem excluídos do sistema FIFA, não só os clubes, mas também seus jogadores ficariam de fora do modo mais famoso do game. Pra piorar, a FIFA é frontalmente contrária à criação da Superliga e, inclusive, já deu demonstrações públicas de que estaria disposta a banir os clubes participantes desta nova competição. Ou seja, a EA precisaria se reinventar após a expiração das licenças desses clubes antes do término de suas licenças com a empresa em 2022.
Ressalta-se que um dos maiores argumentos de venda de qualquer jogo FIFA é o da “autenticidade inigualável”, visto que a série obtém a licença do uso de imagem de 17.000 jogadores, mais de 700 times, além de mais de 90 estádios e 30 ligas[1]. A EA Sports detém os direitos de imagem por meio de fontes diversas, incluindo acordos com a FIFPro (conforme já exposto), FIFA, e até mesmo acordos separados com clubes e ligas ao redor do mundo, tais como a UEFA Champions League, UEFA Europa League, CONMEBOL Libertadores, CONMEBOL Sudamericana, Premier League, La Liga Santander e Bundesliga.
Logo, com uma possível exclusão dos times participantes da Superliga pela entidade máxima do futebol, tais competições também perderiam valor no âmbito dos videogames devido à ausência de seus principais clubes e jogadores. Sem dúvidas seria um baque gigantesco nos resultados financeiros da Eletronic Arts. Até porque, qual seria o nível de engajamento de um jogo de futebol sem Messi, CR7, Salah e Bruno Fernandes? Como compensar a ausência dos melhores jogadores e times de futebol nas competições de esports? Os gamers investiriam tempo e dinheiro em um jogo que não contém seus principais ídolos? São questionamentos válidos que, hoje, ainda são difíceis de serem respondidos. Mas, resumindo, o FIFA ainda seria um jogo que acumularia várias licenças, porém, poucas relativas às equipes mais populares.
E é esta a brecha que proporciona uma chance de ouro para a Konami, desenvolvedora japonesa da série Pro Evolution Soccer (PES), dado que a criação da Supeliga representaria uma bela oportunidade para que essa empresa obtenha a licença dos melhores clubes europeus que figurariam na nova competição. A desenvolvedora poderia aproveitar o sensacionalismo em torno do novo torneio e licencia-lo, dado que, a partir do momento em que esses clubes fossem punidos pela FIFA com a exclusão, estes provavelmente estariam à margem não do seu sistema piramidal, mas também do próprio modo Ultimate Team do jogo FIFA em decorrência da relação umbilical que possuem Eletronic Arts e a entidade máxima do futebol. Desse modo, a Superliga poderia proporcionar à Konami uma das maiores oportunidades desde a era Playstation 2.
Importante destacar que, atualmente, a referida empresa já possui licenças de quatro dos clubes da ESL — sendo estes Arsenal, Manchester United, Barcelona e Juventus — além de algumas competições como a italiana Serie A e a francesa Ligue 1. No entanto, o ponto negativo da franquia é de que o PES não possui direitos relativos à UEFA Champions League desde 2018. Ou seja, é possível dizer que, hoje, a série não detém a exclusividade de nenhuma competição marcante, estando à sombra da franquia FIFA no que tange ao conteúdo de suas competições licenciadas.
Nesse cenário, supondo que a competição seguisse e a Konami avançasse na aquisição dos direitos sobre a Superliga, o Pro Evolution Soccer renasceria com times, uniformes, estádios, clubes e jogadores das doze maiores agremiações do mundo e, muito provavelmente, de forma exclusiva, visto todos os indícios de que a FIFA não irá se abster de uma postura agressiva contra as equipes fundadoras e seus atletas. O PES, além de se tornar a nova casa das equipes europeias mais populares, passaria a ser também o jogo oficial do torneio. Assim, se alguém desejasse jogar com os melhores times do mundo, teria que recorrer ao produto da Konami.
Situação semelhante é a da desenvolvedora britânica Sports Interactive, dona da franquia Football Manager (FM). A empresa obteve sucesso ao recriar a estrutura do futebol no ambiente virtual, sendo responsável pela produção do jogo de futebol que mais oferece funcionalidades ao aficionado pela modalidade, incluindo a presença de times e ligas licenciadas de todo o planeta. Entretanto, assim como o PES, o FM não detém as licenças da UEFA Champions League, tornando-se a criação da Superliga Europeia uma forma para que a Sports Interactive obtenha não só a licença dessa nova liga, mas também garantir a presença dos melhores times do mundo no seu principal produto.
Cabe salientar que a Franquia Football Manager não é comercializada oficialmente no Brasil desde 2017, devido a problemas com o licenciamento. Tanto a desenvolvedora do jogo quanto sua distribuidora, SEGA, procuram evitar problemas judiciais no país por uso indevido da imagem de jogadores, membros da comissão técnica e entidades de prática desportiva.
Destaca-se que, diferentemente das desenvolvedoras EA e Konami, a Sports Interactive foi a única a trazer a realidade política para dentro dos seus games. Em 2019, o Football Manager exerceu uma função educativa para a sociedade europeia ao incorporar vários problemas relacionados ao Brexit. Inclusive, o game foi usado como laboratório para coleta de informações sobre os impactos sociais e econômicos potenciais do Brexit na Premier League, principalmente no tocante ao registro e transferência de atletas dentro desse cenário de dissidência da União Europeia.
Mesmo assim, fica o sinal de alerta. Se no caso do Brexit a Sports Interactive buscou levar ao seu principal produto aquilo que poderia acontecer na vida real, só podemos torcer para que, no caso da Superliga Europeia, a arte não imite a vida também. Quanto ao resto? Bom, seguiremos acompanhando os próximos capítulos dessa história que, aparentemente, aceitou apenas uma vírgula, e não um ponto final.
Findo o objetivo proposto de abordar os impactos do surgimento dessa nova competição no mundo dos games, peço vênia ao leitor para expor a minha opinião acerca da criação da Superliga Europeia.
Acredito que estamos presenciando a criação de um cartel monopolista no mundo do futebol, que almeja obter para si os principais benefícios na modalidade e relegar ao resto dos clubes apenas o benefício marginal.
E, apesar de alguns não concordarem, considero que o futebol não é um mundo à parte das relações econômicas e sociais. Até porque, capitalismo e futebol sempre andaram de mãos dadas, pois o futebol, assim como o referido sistema de produção de riquezas, também construiu um sistema que devora diversos produtos, bem como absorve e comercializa todas as relações sociais em todos seus parâmetros. E quando dizemos todas, não é exagero. Basta analisarmos a relação do futebol com os videogames, músicas, literatura etc.
Ademais, sob o aspecto político-social, o projeto da Superliga também pode ser visto não só como consequência dos processos de concentração de capital em escala mundial, como também uma tentativa dos clubes mais ricos de garantirem seus benefícios após o período de pandemia causado pela COVID-19. Por isso, não se trata de idealizar ou defender o modelo atual sob o discurso de sermos todos contra o futebol moderno, mas sim de entender como a proposta da Superliga é sua consequência lógica.
A solução para este problema está longe de ser encontrada no modelo anterior ao surgimento da Superliga, até porque, aquele se resume na aspiração de diversos clubes em fazer parte da elite dos clubes mais ricos. Nesse sentido, claramente é preciso que todos os players dessa indústria, e que amam a modalidade, apostem em um modelo que “descomodifique” as competições e suas equipes. Um modelo no qual os torcedores realmente tenham o direito ao futebol e a preocupação acerca do grau de competitividade entre as equipes esteja sempre acima dos caprichos individuais.
De fato, cada um constrói sua própria utopia. A minha consiste na esperança de que todos os clubes se vejam como parceiros, com direitos iguais às recompensas obtidas pela prática desportiva, e que o futebol volte a ser um produto dedicado ao público que o sustenta, ao invés de ser apenas mais um objeto que serve aos caprichos de uma dúzia de seres egoístas em detrimento daqueles que realmente amam o esporte.
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[1] https://www.ea.com/pt-br/games/fifa/fifa-21/leagues-and-clubs-authenticity
Leonardo Herrero Domingos é fundador e corresponsável acadêmico do Grupo de Estudos Direito e Desporto (GEDD) São Judas e cursa o 8º semestre de Direito na Universidade São Judas. Possui certificações em Direito Desportivo pela PUC-Rio, FGV, FUTJUR e GoUp Football; Fundamentos da Gestão de Clubes e Federações pela FIA; Gestão em eSports pela THE360; Consolidação de Empresas pela USP; Inglês Jurídico pela FGV; Noções de Common Law pela University of London e; Moral Foundations of Politics pela Yale University. Atualmente, cursa Intercultural Negotiation na Universidad Finis Terrae. É, também, Secretário Geral na Associação Brasileira de Gamers.