INTRODUÇÃO
No passado, em triste capítulo escrito na história de nossa civilização, escravos eram utilizados para qualquer trabalho, a qualquer momento. Seus proprietários os usavam tanto para trabalho braçal quanto para fins de entretenimento. Ao mesmo tempo em que seguiam todas as ordens rígidas de seus senhores relacionadas à busca de lucro dos exploradores, os escravos muitas vezes eram obrigados a competir entre si em lutas corporais, como forma de gerar divertimento aos seus “donos”.
Tal conduta parece não ter ficado no passado. Foi notícia esse mês a acusação feita por sete atletas de esportes de combate em relação ao ex-lutador do UFC Francimar “Bodão” Barroso, que teria convidados atletas pra lutar em eventos de MMA na Rússia por ele promovidos, tendo o atleta supostamente ficado com o dinheiro dos patrocinadores do evento depois de cancelá-lo, não pagando os lutadores convidados, além de submetê-los à condição análoga à escravidão, cobrando pela estadia dos atletas em território russo, fornecendo-a em condições precárias.[1]
Os atletas Ednaldo “Lula” Oliveira e Leonardo “Leleco” Guimarães, que também lutaram no UFC no passado, alegam que Barroso os convenceu a viajar para a Rússia com a promessa de que lutariam pela promoção de MMA “Bodão Fighting Championship”, de propriedade de “Bodão”. Os eventos teriam sido cancelados em três ocasiões distintas em 2024, apenas alguns dias antes de sua realização, e os lutadores não receberam nenhuma de suas bolsas contratadas.
“Lula” alega que os atletas foram inicialmente alojados em um bom apartamento na Rússia, mas depois foram transferidos para uma pequena sala nos fundos da academia de “Bodão” e mal tinham dinheiro para comida. De acordo com o grupo de lutadores, Barroso prometeu pagar a eles uma taxa diária de 1.000 rublos (cerca de US$ 10), mas eventualmente começou a atrasar os pagamentos.
Ainda segundo o atleta:
“havia ratos e baratas por toda parte e não havia dinheiro para voltarmos ao Brasil. O acordo original era que ele pagaria por nossos custos até lutarmos, mas depois ele começou a nos cobrar por tudo… Ele vem fazendo isso há muitos anos, então estamos nos reunindo para entrar com um processo contra ele agora.”[2] (tradução nossa)
Em relação à alegação de ‘Lula”, “Bodão” negou qualquer irregularidade, se manifestando da seguinte forma:
“Ele fez duas lutas em uma grande organização [UFC], eu o derrotei e, desde então, ele disse que está tudo normal entre nós. Ele disse que era meu amigo, que éramos companheiros, então eu o trouxe para cá, mas nunca senti que ele era realmente sólido. Muitas pessoas me disseram que ele estava apenas tentando se vingar de mim, que estava bravo comigo porque achava que eu era responsável por ele ter sido cortado [do UFC]. Eu pensava: ‘O quê? Ele é doente mental? Isso é um esporte.
“Infelizmente, eu não tinha ideia. Eu o ajudei em tudo o que pude, mas as pessoas diziam que ele estava com raiva e inveja de mim.[3] (tradução nossa)
“Bodão” alegou ainda que os cards do “Bodão Fighting Championship” foram cancelados devido à inúmeras circunstâncias, incluindo o ataque russo na Ucrânia. Ele disse que pagaria os voos dos lutadores de volta para casa, mas eles deixaram o país durante a noite sem informá-lo, e ele alegou que pagou a todos os lutadores a taxa acordada para as aulas particulares dadas em território russo.
O promotor negou todas as alegações e disse que alguns lutadores deixaram a Rússia lhe devendo dinheiro:
“Eles tiveram que me pagar porque tínhamos um acordo. Eu não queria mais do que o que havíamos combinado, que era 20% [de suas bolsas]. Alguns não lutaram, e um deles fugiu durante a noite. Eu descobri quando ele estava no aeroporto e ele fugiu sem me pagar nada. Eles até criaram uma conta falsa no Instagram para enviar palavras maldosas à minha esposa.” (tradução nossa)[4]
“Leleco”, que conseguiu voltar ao Brasil na véspera do Ano Novo, assim se manifestou sobre a situação:
“Eles colocam os caras em trabalho escravo aqui. Eles lhes dão 400 rublos (US$ 3,60) por dia. Isso não é nada. Eles trazem pessoas com uma passagem só de ida e você não pode voltar, porque a passagem aérea não existe. Você tem que lutar para conseguir dinheiro para voltar, e quem sabe se eles realmente conseguirão uma passagem para você.”[5] (tradução nossa)
As alegações dos atletas, se confirmadas, levam à configuração de tráfico de atletas e exploração de trabalho em condição análoga à escravidão por parte do promotor do evento.
Veremos mais sobre a questão a seguir.
O TRÁFICO DESPORTIVO
Valendo-se do conceito do Decreto n. 5.948/2006[6], pode-se entender que o tráfico de pessoas no esporte — ou tráfico de atletas — caracteriza-se, na sua modalidade mais recorrente, pelo recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de atletas mediante promessas de condições de trabalho inexistentes ou outros artifícios fraudulentos similares, valendo-se da vulnerabilidade das vítimas e de suas famílias. Noutras palavras, dá-se com a cooptação ilícita de atletas por empresários, agentes e/ou clubes desportivos do Brasil ou do exterior, usualmente mediante falsas promessas ou outras fraudes.[7]
A esse respeito, ademais, vale lembrar que o Brasil é signatário do Protocolo de Palermo — ou, mais precisamente, o “Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças” —, importante instrumento da Organização das Nações Unidas de vocação universal.
Nesse sentido, editou-se o já citado Decreto n. 5.948/2006, definindo-se o tráfico de pessoas como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração” (art. 29).[8]
O tráfico de atletas geralmente se realiza por intermédio de falsas promessas, que se disseminam na origem, e pelo subsequente descumprimento dos contratos (ou das promessas), agora no destino (especialmente no exterior) não raro associado à retenção/confisco de passaportes e outros documentos, cerceando a locomoção e obstando o retorno ao país de origem. O seu ensejo mais frequente se revela sob a forma de convites para “peneiras”, para a realização de intercâmbios ou para “estágios”. Não raro, o processo de aliciamento se completa com violência, maus-tratos, assédio moral e sexual, extorsão aos familiares e até mesmo exploração física e/ou sexual.[9]
A se confirmar, a conduta do promotor seria enquadrada na previsão legal supra, considerando que este alega ainda que os atletas “fugiram sem me pagar nada”, mesmo sem terem lutado.
Acerca da suposta dívida dos atletas com o promotor, cumpre ressaltar que o ordenamento jurídico brasileiro veta atos jurídicos que tragam em seu bojo vícios sociais ou de vontade, como são os consentimentos obtidos mediante fraude, coação ou constrangimento. Vejam-se, a propósito, os arts. 138 a 165, 166 e 171 do Código Civil.[10]
Também pode ter incorrido o promotor no crime previsto no art. 206 do Código Penal, o chamado “aliciamento para o fim de emigração”:
Recrutar Trabalhadores, mediante fraude, com o fim de levá-los para território estrangeiro.
Pena – detenção, de um a três anos e multa.
O aliciamento de trabalhadores consiste na conduta de aliciamento, de fraude, onde o sujeito passivo deve enganar o trabalhador para que saia do Brasil para outro país. Para caracterizar o crime, o sujeito ativo deve agir com dolo e exige também o aliciamento com a finalidade descrita no artigo.[11]
Quanto ao alegado pelos atletas, relativo às condições precárias do local em que se encontravam hospedados aguardando as lutas que não ocorreram, veremos no tópico seguinte a previsão legal acerca de tal conduta por parte do promotor.
DA REDUÇÃO DO ATLETA À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO
De acordo com o art. 4°, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), “ninguém será mantido em escravidão ou em servidão; a escravidão e o trato dos escravos serão proibidos em todas as suas formas”. Ademais, O art. 23, I, dispõe que “todo o homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”. Embora tenha sido formalmente abolida a escravidão em 1888, a sujeição de uma pessoa ao domínio de outra (plágio) persistiu e somente foi criminalizada em 1940.[12]
Hoje, a conduta de redução da pessoa à condição análoga à escravidão se encontra prevista no Código Penal Brasileiro por meio do art. 149 do Código Penal, com redação dada pela Lei n. 10.803/2003, que traz os seguintes dizeres:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e muita, além da pena correspondente à violência.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
l – contra criança ou adolescente;
Il – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (grifo nosso)
A legislação traz previsão expressa da situação narrada pelos atletas – hospedados em local com higiene precária, sem condições de deixar o país onde estavam por não dispor de capacidade financeira para tanto, tendo o promotor deixado claro que os atletas “lhe deviam”, supostamente expondo-os a um trabalho degradante.
O trabalho degradante, também previsto na redação do tipo, mostra-se atentatório a dignidade humana. A Constituição Federal resguarda o direito de ninguém ser submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), de modo que, ao privar o trabalhador de dignidade, mediante limitação na alimentação e moradia, submissão do trabalhador a um cenário humilhante de trabalho, mais compatível a um escravo do que a um ser humano livre e digno, restará caracterizada a prática delitiva.[13]
A norma legal passou a proteger tanto a liberdade quanto a dignidade da pessoa que trabalha, com o objetivo de impedir a exploração extrema de seres humanos que, apesar de juridicamente livres, estão faticamente subjugados, a ponto de atentar contra a sua condição de pessoa. Para isso, a análise do grau de domínio e de sujeição que o tomador do serviço impõe ao(a) trabalhador(a) é fundamental para a configuração do delito.[14]
Nos domínios do Direito do Trabalho, o trabalho prestado em condições análogas à de escravo, como haveria de ser, embora constitua crime, produz todos os efeitos jurídicos inerentes a uma relação de emprego, como os direitos do trabalhador à anotação do contrato de trabalho em CTPS, recolhimento do FGTS e INSS, férias + 1/3, 13° salário, diferenças salariais decorrentes da inobservância do mínimo legal ou piso normativo, horas extras e indenização por danos morais, e quaisquer outros direitos violados aos trabalhadores, nos termos previstos na CLT, Súmulas e Orientações Jurisprudências do Tribunal Superior do Trabalho, bem como em leis esparsas trabalhistas, como exemplo a Lei do Seguro-Desemprego (Lei n° 7.998, de 11 de janeiro de 1990), Lei do Vale-transporte (Lei n° 7.418, de 16 de dezembro de 1985), Lei do FGTS (Lei n° 8.036, de 11 de maio de 1990), Lei do 13° Salário (Lei n° 4.090, de 13 de julho de 1962, Lei do Repouso Semanal Remunerado (Lein° 8.036, de 11 de maio de 1990), dentre outras.[15]
Confirmando-se as alegações dos atletas quanto às condições em que se encontravam, propiciadas por seu contratante, poderá o promotor responder pelas condutas previstas no texto legal, além do ter reconhecido o vínculo empregatício com os atletas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A situação narrada pelos atletas não é incomum no meio desportivo. O tráfico de atletas já ocorre há bastante tempo em outros esportes, mas ainda não havia sido exposto tão abertamente no meio do esporte de combate, ao menos não no Brasil.
Como vimos, o ordenamento jurídico prevê penas como forma de combate de tais práticas, sendo que o Poder Público, como fez em outros casos no esporte[16], tem a obrigação de tomar ciência da questão e ajuizar ações contra os responsáveis, sendo que a Justiça do Trabalho seria a competente para julgar a demanda, devido ao fato de que a relação de trabalho é potencial, pois, ainda que o vínculo não tenha sido formalizado – já que não houve evento de lutas – a especializada poderia analisar questões relativas às condições de trabalho dos atletas, tendo havido também uma expectativa de trabalho por parte dos lutadores. Porém, ainda que assim não fosse, o próprio promotor alega que os atletas deram aulas em sua academia, tendo então prestado serviço pra este.
A questão precisa ser averiguada e a prática, se confirmada, punida devidamente.
Crédito imagem: UFC/Divulgação
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[1] CRUZ, Guilherme. ‘We’re treated like slaves’: UFC veteran Francimar Barroso accused of ripping off fighters in Russia; Barroso responds. MMA FIGHTING, EUA, 9 jan. 2025. Disponível em: https://www.mmafighting.com/2025/1/9/24334400/treated-like-slaves-ufc-veteran-francimar-barroso-accused-ripping-off-fighters-russia-mma. Acesso em: 10 jan. 2025.
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[5] Ibid.
[6] Brasil. DECRETO Nº 5.948, DE 26 DE OUTUBRO DE 2006. Aprova a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e institui Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – PNETP. Diário Oficial da União – Seção 1 – 27/10/2006, Página 9 (Publicação Original). Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2006/decreto-5948-26-outubro-2006-546134-publicacaooriginal-59985-pe.html. Acesso em: 10 jan. 2025.
[7] FELICIANO, Guilherme Guimarães. HAKIM, Sarah. O Tráfico de Atletas: Primeiras Aproximações. In: FELICIANO, Guilherme Guimarães et al. Direito do Trabalho Desportivo: Panorama, Crítica e Porvir: estudos em homenagem aos ministros Pedro Paulo Teixeira Manus e Walmir Oliveira da Costa in memoriam. 1. ed. Campinas, SP: Lacier, 2024, p. 27.
[8] Brasil, 2006, Op. Cit.
[9] FELICIANO, Op. Cit., p. 28.
[10] Ibid.
[11] PEIXOTO, Joseval; OLIVEIRA, JB; PRETTI, Gleibe. Direito penal do trabalho. São Paulo: LTr, 2018, p. 131.
[12] CARDOSO, Jair Aparecido; SERVO, Marina Calanca. Dos crimes contra a organização do trabalho e demais previsões criminais sobre o trabalho humano: análise à luz do princípio da vedação da proteção insuficiente. 1. ed. Campinas, SP: Lacier Editora, 2024, p. 149.
[13] Ibid.
[14] (TST) Tribunal Superior do Trabalho; (CSJT) Conselho Superior da Justiça do Trabalho (org.). Protocolos para atuação e julgamento na Justiça do Trabalho. Araucária: PR: Impressoart Gráfica e Editora, 2024. Disponível em: https://www.csjt.jus.br/documents/955023/0/Protocolos+de+Atuação+e+Julgamento+da+Justiça+do+Trabalho+%281%29.pdf/3a7256a6-2c97-22d7-a74e-bf607baf22ce?t=1724100057072. Acesso em: 10 jan. 2025.
[15] FERREIRA, Fernanda et al. O trabalho escravo: primórdios no Brasil, reações legais e sua evolução conceitual no âmbito internacional. In: ASSUNÇÃO, Any Ávila; CARVALHO, Augusto César Leite de (org.). Precedentes da corte interamericana de direitos humanos: resgate da primazia concorrente dos direitos sociais em perspectiva ética emancipatória. Brasília, DF: Venturoli, 2023. p. 345-374.
[16] https://tst.jus.br/web/guest/-/justi%C3%A7a-do-trabalho-vai-julgar-a%C3%A7%C3%A3o-contra-acusado-de-cooptar-jovens-com-promessa-de-carreira-no-futebol.