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A (des)culpa do futebol

“O torcedor internacional, de ouvido preso ao rádio, respirou fundo e exalou em suspiro a sua felicidade: ‘Arre, graças a Deus que desta estamos livres!’.”

Por causa de uma dessas, nas crônicas que escrevia no Correio da Manhã, Drummond se perguntava se o futebol é mesmo fonte de prazer (individual e coletivo) ou uma contribuição valiosa pra se desafogar de uma angústia adormecida. Não sabia se o torcedor, nesse estado, celebrava a vitória do seu time ou se aliviava como quem parece consolar-se com um curativo particularmente doloroso, pra pôr fim num tratamento cruel.

Como toda história tem dois lados, talvez o mesmo acontecesse lá embaixo, onde o concreto dava lugar ao gramado. Falo isso porque também o jogador, quando se matava em campo e olhava com sufoco lá pro alto, vendo quem reclamava das cabines, já fazia tempo, parecia que nem sempre se divertia com o futebol.

O Fausto era desses. Aborrecido – mais porque passava necessidade do que com a corneta que vinha das arquibancadas, contam que era capaz de tocar o braço em qualquer um que lhe reclamasse aos ouvidos. Podia ser torcedor ou diretor do Vasco. Se alguém não gostava dele, que mudasse de roupa, vestisse os shorts e entrasse em campo pra correr no lugar. Ia ver o que é bom.

De camisa ensopada, e pensando na mãe que morava numa casa só de porta e janela, na cabeça do Fausto todo mundo que via ele jogando tava sempre esperando alguma coisa. Pra começar, queriam que ele jogasse futebol não por dinheiro, mas por amor.

Tinha gente pra quem isso funcionava. Na verdade, mais ou menos. Funcionava diferente. O Fortes, por exemplo, tinha tudo. Era branco, vinha de família “bem-nascida” e, porque não precisava do dinheiro, não trabalhava. Jogava por amor. E, apesar de não precisar, porque era branco, ganhava mais.

O Fausto, que antes jogava no Bangu, chegara a mudar de camisa pra tentar melhorar de vida. Via isso e se roía, claro. Mas a verdade é que ele tinha mesmo é que aguentar. E aguentava calado. Pra ele (e pra mais um tanto), era tudo ao contrário. Jogava por dinheiro, porque o corpo era um só. O sustento tinha que vir do campo, disfarçado de bicho. E nem sempre vinha. Por isso, não se divertia jogando. E ainda tinha que ver, lá nas arquibancadas, quem ele achava que se divertia com ele.

Achava. Porque, voltando ao outro lado da história, verdade seja dita: se era o Fausto nas mãos do Vasco, era o torcedor do Vasco nas mãos do Fausto. O refém do espetáculo gastava o que tinha e o que não tinha pra se espremer entre quem também raspava o fundo do tacho pra olhar praquele pedaço de grama. Carregado dos maus-tratos diários, chegava no campo inchado das coisas que ferviam dentro dele, e tinha que descarregar em alguém as angústias que não o deixavam em paz.

Se fossem usar um desses aparelhos de raio X, iam ver que, de toda a insatisfação que gritavam pro Fausto lá de cima, pouca coisa tinha motivo no campo. No desabafo do impropério, tinha mais coisa que era da vida. Do trabalho. Da falta de trabalho.

Quando é assim, o medo de voltar pra casa menor do que chegou deixava os nervos à flor da pele. Era como ter que seguir com o tratamento (cruel) sem o curativo, por pior que ele fosse.

Não que muita coisa tenha mudado. Quando a vitória não vem, o torcedor mais parece ter sofrido uma agressão pessoal, do lamentar um martírio coletivo. É coisa difícil de aceitar: ver lá embaixo quem pode trabalhar e se divertir, e ainda faz caso. Do jogador que vai mal, que atire a primeira pedra quem nunca pensou que merecia que o tirassem do futebol, pra trabalhar em escritório. Ia ver o que é bom. Esquecemos do Fausto.

Se alguém olhasse de fora, poderia dizer: enquanto um se mata no campo, o outro se espreme pra ver – cada um sofrendo por causa do outro. E se ninguém tem culpa de nada, quem haveriam de culpar?

……….

Referências bibliográficas
ANDRADE, Carlos Drummond de. Quando é dia de futebol. Rio de Janeiro: Record, 2002
FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro. Mauad, 2003

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